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Paulo Filho

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Guerra comercial

Amigos, inimigos, pinguins e focas: a geopolítica das tarifas de Trump

Diante de um cenário global de incertezas, as tarifas impostas por Donald Trump desafiam a lógica econômica e reavivam fantasmas do passado. (Foto: Aaron Schwartz/EFE/EPA/POOL)

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O assunto da semana foram as tarifas alfandegárias impostas a praticamente todos os países do mundo — com algumas marcantes exceções — pelo presidente dos EUA, Donald Trump.

A decisão de Trump, que levou os EUA a praticar as mais altas taxas de importação desde 1909, fez tábula rasa de todo o arcabouço normativo construído em torno da Organização Mundial do Comércio.  

A medida causou um terremoto na economia global: bilhões de dólares evaporaram em dois dias de quedas acentuadas nas bolsas de valores ao redor do mundo, enquanto analistas de diferentes nacionalidades retratavam a guinada protecionista norte-americana como um indício do fim de uma era de globalização econômica.

Essa era, afinal, havia sido arquitetada principalmente pelos próprios norte-americanos e — até por isso — havia conduzido os EUA ao posto de maior economia mundial.

As novas taxas punem indistintamente adversários e aliados. Isso fica especialmente evidente ao se analisarem os valores impostos a países asiáticos. Vietnã, Laos e Camboja, que se tornaram exportadores de produtos manufaturados justamente por se apresentarem como alternativas à China, estão entre os que receberam as tarifas mais pesadas.

Japão e Coreia do Sul, os maiores aliados dos EUA na região, foram atingidos com tarifas de 24% e 26%, respectivamente. A Taiwan foi imposta uma tarifa de 32%, embora, neste caso, os EUA tenham tido o cuidado de excluir os semicondutores — principais itens da pauta de exportações da ilha — da lista de produtos tarifados.

Todos esses governos já demonstraram irritação com a postura americana e, mesmo que negociações futuras levem a reduções tarifárias, a confiança no comportamento do governo dos EUA sob a liderança de Trump está definitivamente abalada. 

Japoneses, sul-coreanos e taiwaneses já se perguntam se, em caso de eclosão de um conflito no Leste Asiático, terão o mesmo destino dos ucranianos em relação ao apoio norte-americano. 

Isso tudo favorece a China, que poderá se apresentar como um parceiro comercial mais confiável e verá sua liberdade de ação geopolítica ampliada pela retração da influência norte-americana na região.

Mesmo voltando seus canhões tarifários contra regiões desabitadas — ou habitadas apenas por pinguins e focas — como as Ilhas Heard e McDonald (tarifas de 10%), e contra Madagascar, um dos países mais pobres do mundo, que exportou no ano passado US$ 733 milhões em baunilha, metais e vestuário para os EUA (tarifas de 47%), Trump isentou a Rússia. 

Mesmo sob embargos comerciais, a Rússia exportou cerca de US$ 3 bilhões para os EUA no ano passado. Também ficaram de fora da lista países como Belarus e Coreia do Norte, dois dos mais próximos aliados da Rússia na guerra.

Mais do que desorganizar a economia mundial, Trump está acrescentando enormes camadas de incerteza a um mundo já bastante desestabilizado pela crise da Covid-19, pela guerra na Ucrânia, pela crise climática e pelo esgotamento dos regimes internacionais capitaneados pelo sistema ONU.

Mark Twain escreveu que “a história não se repete, mas rima”, querendo dizer que, apesar de não se repetir exatamente, a história pode apresentar semelhanças com o passado. 

Vários historiadores já identificaram paralelos entre o período atual e a década de 1930, cujos acontecimentos acabaram por levar à eclosão da Segunda Guerra Mundial. As tarifas impostas pelos EUA hoje são um exemplo dessa “rima”.

Após a Grande Depressão de 1929, os EUA impuseram a chamada Tarifa Smoot-Hawley, que aumentou significativamente os impostos sobre milhares de produtos importados. 

A medida foi seguida por retaliações de outros países, gerando uma espiral protecionista global que, por sua vez, levou a uma queda drástica do comércio mundial (redução de cerca de dois terços entre 1929 e 1934), agravando a crise econômica global e intensificando o desemprego e o nacionalismo econômico.

O ambiente de miséria e desemprego em países como a Alemanha tornou-se terreno fértil para a ascensão de regimes extremistas, como o nazismo. Hitler explorou o ressentimento popular, a crise econômica e o fracasso do sistema internacional para justificar seu discurso revanchista e expansionista. 

O protecionismo econômico minou os esforços de cooperação global e enfraqueceu instituições como a Liga das Nações, favorecendo o isolacionismo e o avanço de políticas agressivas por parte de potências revisionistas, como a própria Alemanha, a Itália e o Japão. O resultado, todos conhecem: a guerra.

Voltando aos dias atuais, embora a maioria dos países tenha se contido, evitando retaliar de imediato os EUA, seu principal rival — a China — não titubeou. Impôs imediatamente o mesmo percentual tarifário de 34% aos produtos norte-americanos, além de anunciar restrições à exportação de terras raras e a proibição de comércio com 16 empresas dos EUA.

O exemplo chinês poderá ser seguido, especialmente pelos europeus, que também já ameaçam responder na mesma moeda

Em um cenário global já marcado por tensões e incertezas, a política tarifária de Trump não apenas desafia a lógica econômica, como reaviva fantasmas do passado — e talvez prepare o terreno para tempestades que o mundo julgava superadas.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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