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A Europa, ao mesmo tempo em que percebe de forma palpável a Rússia como uma ameaça à sua segurança, assiste a uma acelerada erosão de seu papel como ator geopolítico global relevante. As indicações disso são várias, mas a mais recente — o completo escanteamento dos europeus da elaboração do plano apresentado pelo governo de Donald Trump nas negociações com a Rússia para uma paz na Ucrânia — é a mais evidente.
A invasão russa da Ucrânia e o terremoto geopolítico causado pelo retorno de Trump à presidência dos EUA foram os eventos que desnudaram a fragilidade europeia. Uma frase que vem sendo repetida com muita frequência, atribuída ao ex-primeiro-ministro dinamarquês e ex-secretário-geral da OTAN Anders Fogh Rasmussen, resume o problema: “A Europa se acostumou à segurança americana, à energia russa barata e aos manufaturados chineses baratos.”
A guerra na Ucrânia bloqueou a energia russa, Trump faz os europeus duvidarem de que os EUA estarão sempre disponíveis para a defesa da Europa, e os manufaturados chineses baratos dilapidaram a capacidade produtiva do velho continente.
Os europeus, incapazes de impor uma solução para a guerra em seu próprio continente, não possuem praticamente nenhuma voz ativa nas principais questões geopolíticas globais. Não tiveram relevância na crise em curso entre Israel e o Hamas e não têm o que dizer acerca da pressão norte-americana sobre a Venezuela ou das disputas envolvendo a China no Mar do Sul da China e em Taiwan, por exemplo.
Ao mesmo tempo em que perde relevância nas grandes mesas de negociação globais, a Europa assiste a um incremento das ações híbridas russas sobre seus territórios. Nos últimos meses, uma série de incidentes com drones misteriosos, cuja origem é atribuída à Rússia, causou tensões em bases aéreas e aeroportos em vários países europeus.
Além disso, incursões de aeronaves militares e de navios de guerra russos, somadas à sabotagem de uma linha férrea na Polônia, levaram os europeus a concluírem que os russos testam os limites da Europa.
Essa situação levou muitas autoridades civis e militares a acreditarem que a Rússia está disposta a fazer a guerra chegar à Europa Ocidental, o que disparou um sentido de urgência nas capitais europeias, que passaram a anunciar uma série de medidas emergenciais na tentativa de recuperar capacidades militares perdidas.
O aumento dos investimentos em defesa é impressionante e reflete esse sentido de urgência. Em 2024, dentre os países da União Europeia, esses gastos aumentaram pelo 10º ano consecutivo, crescendo 19% em comparação com o ano anterior e 37% em relação a 2021.
Na semana passada, divulgou-se que, há cerca de dois anos, os alemães prepararam um plano bastante detalhado, com cerca de 1,2 mil páginas, prevendo todas as necessidades logísticas para o deslocamento de 800 mil soldados da OTAN pelo território alemão em direção ao leste da Europa, para fazer frente a uma eventual invasão russa.
Exércitos precisam de soldados. O serviço militar obrigatório, que havia sido praticamente abolido na Europa, já voltou a ser uma realidade nos países nórdicos e bálticos, que percebem com muito mais intensidade a ameaça russa. A Suécia voltou a adotar o serviço militar obrigatório em 2018, com alistamento para homens e mulheres.
Na Dinamarca, o recrutamento obrigatório foi estendido às mulheres e sua duração aumentada de quatro para 11 meses. A Estônia possui recrutamento militar obrigatório para todos os homens, enquanto a Letônia e a Lituânia, assim como a Dinamarca, selecionam os recrutas por sorteio caso não haja voluntários suficientes.
A Polônia, país que mais investe em defesa em relação ao seu PIB na Europa e que vem implementando uma impressionante modernização de seu aparato militar, planeja adotar um treinamento militar em larga escala para todos os homens adultos, em um esforço para dobrar o tamanho do seu exército.
Movimentos na direção do retorno do serviço militar obrigatório também vêm sendo feitos por alemães e franceses, embora nenhum dos dois países tenha efetivamente dado esse passo. Os primeiros estabeleceram um processo obrigatório de cadastramento e exames médicos para todos os homens ao completarem dezoito anos, enquanto os últimos instituíram um serviço militar voluntário, com o objetivo de aumentar paulatinamente sua reserva mobilizável.
Como se vê, a preocupação com o número de soldados disponíveis para os exércitos é grande. Entretanto, essa disponibilidade passa pela conscientização das populações acerca da possibilidade do retorno do flagelo da guerra. Mas as sociedades europeias, habituadas por sete décadas à paz, prosperidade e baixos custos de segurança, não estão psicologicamente preparadas para o pesado fardo da guerra.
Nesse sentido, causou grande repercussão o discurso proferido pelo general Fabien Mandon, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas da França. Mandon, no último dia 19 de novembro, disse uma obviedade: uma sociedade deve saber que, se entrar em guerra, seus filhos morrerão em combate.
Ele elaborou seu raciocínio afirmando que os franceses devem estar preparados para a realidade dos conflitos armados: “Devemos aceitar que vivemos em um mundo de riscos e que talvez tenhamos que usar a força para proteger quem somos. Isso é algo que havia desaparecido completamente de nossas conversas em família.”
Diante desse quadro, a Europa parece perceber com nitidez a ameaça russa, mas ainda não dispõe das ferramentas políticas, militares e psicológicas para enfrentá-la
Esse “despertar estratégico”, expresso no aumento dos investimentos em defesa, na revisão das políticas de recrutamento e na intensificação do planejamento militar, indica que governos e Forças Armadas compreenderam a gravidade do momento.
Falta, porém, um elemento crucial. Clausewitz já ensinava que a guerra é constituída por uma trindade paradoxal: governo, forças armadas e povo. Eis o ponto central: a sociedade europeia, moldada por décadas de paz e prosperidade, estará preparada para assumir sua parte nessa trindade? Essa é exatamente a dúvida que hoje inquieta o chefe do Estado-Maior Conjunto francês — e talvez seja a principal condicionante do futuro da Europa.




