Um tanto por tédio e outro tanto por falta de opção, eis que me vi assistindo ao documentário “Romário, o Cara”, disponível na HBO Max ou só HBO ou só Max ou sabe-se lá que nome o serviço de streaming estará usando quando você ler este texto. O doc, na verdade uma série, conta a história do ex-craque e atualmente senador Romário, o maior nome da seleção ganhadora do tetracampeonato mundial, em 1994.
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O documentário é pura nostalgia. Dá saudade daquele tempo que não se pretendia a limpinho, purinho e perfeitinho. Um tempo que, se não era melhor do que hoje, ao menos parecia mais autêntico. “Romário, o Cara” mostra os últimos momentos de um Brasil que não se levava tão a sério, ou melhor, que não levava nada a sério, embora levasse a seriíssimo coisas como... a Seleção Brasileira de Futebol, com seus dramas e glórias.
Enquanto assistia ao documentário, cujos episódios foram liberados, de dois em dois, nas últimas três semanas, fui fazendo anotações que resultaram na lista abaixo. Acho que você vai gostar de saber que é possível aprender e refletir sobre umas coisinhas com a série.
Bênção ou maldição
Carisma não tem a ver com a pessoa ser ou não boa. Carisma não tem a ver nem mesmo com competência ou honestidade. Carisma não tem nenhuma relação com os fatos ou com a realidade pessoal do personagem. Carisma é carisma e Romário tem de sobra. É impossível não gostar do ex-jogador, mesmo sabendo que ele se tornou um político repugnante. Mesmo com toda a marra, com toda a arrogância. Mesmo depois de revelados os muitos podres do personagem.
E isso é interessante porque Romário é apenas um dentre tantos personagens carismáticos que despertam paixões. Que são amados apesar de seus evidentes defeitos e fracassos – quando não por causa deles. E não só no futebol. Também nas artes e na política, os personagens carismáticos dominam seus campos de atuação, independentemente de suas virtudes e vícios.
O carisma de alguém é um dado da realidade sem ligação com a lógica. É uma bênção ou, com mais frequência, uma maldição. É por isso que não entra na nossa cabeça que alguém possa admirar/odiar pessoas de carisma, como Bolsonaro ou Lula. Ou Romário.
Marra
Romário é arrogante, no limite entre o caricato e o insuportável. É marrento. Bate no peito para se dizer o maioral. É uma postura irritante, mas que tem lá seu quê de engraçada. Sobretudo quando se constata que arrogância é sempre sinal de uma profunda insegurança. No fundo, Romário está apenas expressando o contrário do que pensa de si mesmo.
O que não quer dizer que a pessoa insegura, mas arrogante, não seja extremamente talentosa, como é o caso do Romário. E mais: o ex-craque, apesar da ética questionável, demonstra em suas falas uma vontade contagiante de alcançar a excelência, de não se contentar com a mediocridade e de não aceitar os obstáculos que a vida colocou entre ele e o sucesso. Ou o que ele e o mundo consideram sucesso.
Uma pena que, falando agora sobre o senador Romário, essa vocação para a excelência tenha ficado restrita ao futebol.
Memória afetiva
Não adianta. Você pode não gostar da Globo e sair por aí levantando hashtags o quanto quiser. Nada disso mudará o fato de que a memória afetiva de toda uma geração foi moldada pela Globo e seus profissionais míticos. O maior defeito de “Romário, o Cara”, aliás, é justamente não exibir as partidas da Copa de 1994 com a narração antológica de Galvão Bueno.
Essa ausência deixa claro que, naquela época, havia o Brasil da Globo – o Brasil visto por quase todo mundo e o Brasil de que todo mundo se lembra –; e havia um outro Brasil que era quase marginal. Digo, não dá para entender por que alguém, em 1994, cometeria a loucura de acompanhar a Copa do Mundo pela transmissão do SBT, né?
Os gols de Romário narrados por outra pessoa que não Galvão Bueno perdem a graça. Perdem seu caráter épico – como no caso do gol de cabeça contra a Suécia, na semifinal de 1994. Mas, repito, só tenho essa impressão porque minha memória afetiva foi construída assim. E, se serve para a Copa do Mundo, serve para outras coisas também. Taí o Jornal Nacional (o de antigamente) que não me deixa mentir.
Baggio
A melhor surpresa do documentário “Romário, o Cara” é outro cara: Roberto Baggio – o atacante italiano que todos os brasileiros que assistimos àquela final considerávamos um inimigo. Ainda mais com aquele rabicó que ele usava na época.
No entanto, Baggio é (ou pelo menos o documentário assim o retrata) uma pessoa humilde e razoavelmente sábia – ao menos a ponto de encarar com uma resignação admiravelmente estoica aquele pênalti bizarramente perdido na final contra o Brasil. Não dá exatamente pena; dá vontade de tirar o chapéu e pedir: “Baggio, me ensine mais sobre os fracassos da vida”.
Também é incrível notar como o esporte vive de criar esses vilões absolutos que não são nada disso. Eu mesmo passei os últimos 20 anos odiando Baggio – sem nunca ter me perguntado por quê. Estou falando sério! Minha aversão por ele era tamanha que eu me recusava até mesmo a comer numa pizzaria curitibana que leva esse nome – e que provavelmente não tem nada a ver com o Baggio jogador. Para compensar, acabei de pedir uma pizza de lá.
Futebol era outra coisa
Escrevi na introdução que “Romário, o Cara” é pura nostalgia. É mesmo. E aí não tem jeito. É um tal de “antes era melhor” para cá e “hoje em dia não se vê mais isso” para lá. Assim como o carisma, esse tipo de constatação não tem muita lógica e às vezes não tem nem mesmo base fática – para usar uma expressão que odeio, mas no momento não me ocorre outra.
E nem precisa. É simplesmente bom, não, é delicioso constatar que tivemos o privilégio de testemunhar um mundo que, em alguma medida, era melhor do que o de hoje. Repito: por mais que, na verdade, não tenha sido.
De minha parte, e na condição de um observador bissextíssimo do chamado ludopédio, “Romário, o Cara” só reforça aquilo que vivo dizendo nas mesas de bar, principalmente quando o grande especialista Jones Rossi está presente: o futebol brasileiro era bom quando era um jogo entre marmanjos talentosos, mas meio burrões e perdidos na vida. Depois que virou esporte de alto rendimento disputado por profissionais trilhardários, virou essa porcaria que a gente tem hoje.
Não é à toa que meu filho torce para o Barcelona. Ou Manchester United. Sei lá.
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