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Como vive dizendo um dos grandes comunicólogos do nosso tempo (e por acaso meu amigo), Jones Rossi, um dos maiores pecados do jornalismo contemporâneo é esse distanciamento do leitor. Da vida real. “Quero ver sair do Twitter e carpir um lote”, diz ele, com razão – o que é raro, então aproveite. Pois foi pensando nessa distância e numa forma de encurtá-la que eu, num titânico esforço de reportagem, saí às ruas nesse tempo para perguntar às pessoas comuns, simples e ordinárias (no bom sentido) o que elas pensam sobre a “festa do pijama” do ex-presidente Jair Bolsonaro na Embaixada da Hungria.
O caso está sendo tratado como um crime grave, muito grave, gravíssimo. Tão ou mais grave do que a fraude no cartão de vacinação, as joias sauditas, os móveis “surrupiados” do Alvorada e principalmente a importunação da baleia. Não me conformo com a importunação da baleia. Tadinha. Ontem (25), falava-se que era motivo para prisão preventiva, sumária, perpétua. O ministro Alexandre Padilha chamou Bolsonaro de “fugitivo confesso”. Hahaha, buááá, hahaha, buááá. Não sei se rio ou se choro. O deputado Lindbergh Farias foi além e gravou um vídeo em frente à embaixada, no qual exigia a prisão imediata de Bolsonaro.
Aliás, Lindbergh Farias pintou os cabelos de acaju ou é a luz do vídeo? Ou é a tela do meu computador? – foi nisso que pensei ao vestir minha fantasia de repórter e sair pelas ruas à caça de pessoas dispostas a conversar. O que em Curitiba é sempre uma tarefa ingrata. Mas lá fui eu e na primeira tentativa uma senhora me olhou de cima a baixo, concluiu que eu não era digno de conversar com ela, e seguiu em frente. Na segunda tentativa, pior ainda: me identifiquei como jornalista e quase levei um soco. Daí esclareci que era da Gazeta do Povo e o sujeito pediu desculpas e tal. Mas aí já não havia mais clima para um bate-papo.
Ouvindo respostas que variavam entre o “e daí?!” e o sorrisinho nervoso típico de quem já percebeu que não tem mais liberdade para compartilhar sua opinião com um desconhecido
Minha sorte começou a mudar no ponto de ônibus do Inter 2. Lotado, por sinal. Perguntei a uma senhora o que ela achava do fato de o ex-presidente Jair Bolsonaro ter sido flagrado dentro da Embaixada da Hungria. Deu no New York Times e tudo! Ela não entendeu a pergunta e, pensando bem, não faz mesmo sentido. Repeti e repeti e expliquei o que era uma embaixada, o porquê da Hungria e o fuzuê todo que estavam fazendo sobre o caso. Ela: “E daí?! Pelo menos o Bolsonaro não passou um ano dormindo na cadeia”. Chegou o ônibus, ela embarcou e eu fiquei ali, com cara de tacho.
Enquanto anotava a resposta da entrevistada que vou chamar de Maria, porque esqueci de perguntar o nome dela (falta de prática), uma moça se aproximou de mim. “O senhor é jornalista?”, perguntou. Constrangido, fiz que sim com a cabeça. “Mas da Gazeta do Povo”, esclareci rapidamente, com medo de quase levar outro soco. Ou de ser linchado. “Quero fazer uma denúncia”, disse ela. Até me emocionei. Assim, contendo as lágrimas, empunhei meu bloquinho e caneta. Como nos velhos tempos. “Sou todo ouvidos”, disse. Pra quê!
Ela me contou que a irmã tem hanseníase (“É lepra. Mas ficam aí de frescura, dizem que não pode falar lepra. Mas é lepra”) e que faltam medicamentos na rede pública. No SUS tão querido da Nísia e da beautiful people. “E a minha tia está com dengue”, emendou. Achei estranho, porque dengue não é algo muito comum em Curitiba, mas fica aí o registro. Pena que eu tenha me esquecido de perguntar o nome da entrevistada novamente. Juliana? É, acho que era Juliana. Ou seria Joana? E um sobrenome polonês ou ucraniano qualquer.
Para essa elite, a única coisa que importa é arranjar um motivo para prender Bolsonaro.
“Mas o que você tem a me dizer sobre o fato de o Bolsonaro ter dormido na Embaixada da Hungria. Acha que ele tentou fugir? Que ele vai ser preso?”, perguntei. Ela deu de ombros, pensou um pouco e: “O senhor viu quanto tá custando o arroz? Meu marido não consegue dormir com medo de a Uber sair do país. E minha patroa disse que, se a loja onde eu trabalho for assaltada de novo, ela vai mandar todo mundo embora. Então o senhor acha mesmo que eu tô preocupada com o Bolsonaro?”, desembestou a falar a Juliana. Ou Joana.
O ônibus chegou. O pessoal embarcou. Logo chegaram novos passageiros e eu ali, puxando papo, explicando a estadia de Bolsonaro na Embaixada da Hungria e por que isso seria importante, e ouvindo respostas que variavam entre o “e daí?!” e o sorrisinho nervoso típico de quem já percebeu que não tem mais liberdade para compartilhar sua opinião com um desconhecido. Por mais que esse desconhecido seja lindo, simpático e cheiroso como eu.
Já em casa, de banho tomado e repassando as anotações, concluo sem nenhuma pretensão de brilhantismo que viramos um país onde a elite autointitulada pensante trocou o bem comum pela picuinha. Ninguém mais quer saber de construir um futuro para os filhos e os netos. Dane-se o Brasil de daqui a duas ou três décadas. Para essa elite, a única coisa que importa é arranjar um motivo para prender Bolsonaro. E, assim, derrotar essa gente incômoda, que vive mais ocupada em sobreviver do que em derrubar os moinhos de vento do fascismo imaginário. Essa gente hoje tratada com desprezo e que antes se chamava simplesmente “povo”.