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Artistas querem chamar a atenção. Ainda mais num mercado musical tão pulverizado como o de hoje, quando basta um pouco de sorte e um refrão insuportavelmente pegajoso como o de “Caneta azul/ Azul caneta” para um “artista” surgir, fazer sucesso por duas semanas na Internet e logo depois desaparecer. Mais que isso, artistas chamam a atenção em busca do aplauso eterno. Da “glória que fica, eleva, honra e consola”, como escreveu Machado de Assis sobre a imortalidade literária.
E é em busca de exposição e de aplauso eterno que artistas/militantes lançaram o clipe “Desgoverno”, cuja mediocridade já começa pelo título fraco, fraquinho, mais fraco que trocadilho de Paulo Leminski. É uma performance artística sem maiores consequências que não este texto que por ora escrevo. E que, tenho certeza, vai ter gente dizendo que nem deveria ter sido escrito.
Mas escrevo. Até porque, grosso modo, o clipe “Desgoverno”, em toda a sua “exuberância medíocre”, tanto na letra marcada por rimas paupérrimas em “ão” quanto na melodia de um reggaezinho preguiçoso, reforça algo que disse neste espaço há alguns meses: ainda vamos sentir falta dos grandes artistas e péssimos militantes que formavam a esquerda caviar – termo consagrado pelo meu colega Rodrigo Constantino.
Pegue uma música qualquer de protesto contra a Ditadura Militar. “Cálice”, de Chico Buarque, por exemplo. Você pode não gostar do compositor e cantor de voz anasalada, pode ter até ânsia de vômito ao lembrar que ele apoia Lula e considera Cuba o suprassumo da civilização. Mas não dá para negar que ali há talento e trabalho que, reunidos, alcançam algo próximo da beleza. Tanto quanto a MPB é capaz de se aproximar da beleza, digo, ecoando Bruno Tolentino.
Até mesmo Elis Regina dando aqueles berros insuportáveis tem mais integridade artística do que “Desgoverno”. Até mesmo Caetano Veloso, no esplendor de sua defesa (que mais tarde se revelou hipócrita) da liberdade, tem mais solidez e coerência do que assistir a um jogral de néscios, néscias e néscies comparando as vítimas da pandemia com as vítimas do naufrágio do Titanic ou dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Até "Imagine" tem mais honestidade intelectual do que essa música que fala em "anjo da morte" e que "com amor se retoma a alegria".
Ao ler versos como “É preciso calar a negação” (oi?) ou construções poéticas mais miseráveis do que o salário de um médico em Cuba, como “nós estamos em época sombria/ mas no fim desse túnel há clarão”, fico me perguntando o que aconteceu com o talento de compositores que ao menos sabiam o que era uma rima rica, uma sílaba poética e que davam (belas) piruetas para encaixar letras verdadeiramente inteligentes e, por que não?, críticas na melodia.
“O Brasil tem o remédio para começar a estancar essa mortandade de imediato. Impeachment já!”, diz um ator na parte "cênica" do clipe. Até porque ao compositor faltou talento para encaixar "impeachment" na letra. Será que ele acredita mesmo nisso? Que no dia seguinte a um impeachment de Jair Bolsonaro as mortes por Covid despencariam, as pessoas sairiam às ruas para jogar as máscaras no lixo, os doentes se levantariam dos leitos dançando o reggaezinho de Zeca Baleiro e o vírus daria coletiva no Jornal Nacional para dizer que seu trabalho estava feito, desculpe aí qualquer coisa, zài jiàn?
Vão dizer – como, aliás, já estão dizendo – que foi falta de Lei Rouanet o que levou os artistas a comporem essa espécie de "We Are The World" do mundo bizarro. Não foi. Pelo contrário, o que os levou a gravar "Desgoverno" foi a sobra de Lei Rouanet. Nas últimas duas décadas, e em parte graças aos famigerados subsídios para a cultura, fomentou-se no Brasil um ambiente artístico de elite que independe do público. Para os artistas dessa nova realidade, não importa se o que eles dizem não encontra eco nos ouvidos dos fãs em potencial. Aliás, quem disse que esses artistas precisam de fãs?
É essa desconexão total entre artista e público o que explica, por exemplo, a sobrevivência de uma MPB que tem como nomes Zeca Baleiro (compositor dessa estupidez à qual falta até mesmo a brejeirice de estupidezes semelhantes) e Zélia Duncan. Uma MPB que pôde, durante anos e anos, se dar ao luxo de tocar para o circo vazio, sem que a bilheteria fosse afetada por isso. Daí porque rimar “noção” e “nação” é algo que esses artistas hoje fazem desavergonhadamente: eles não estão nem aí para o público. Para você.
De forma que você vai assistir ao clipe e identifica, aqui e ali, umas atrizes que já estiveram na capa da Contigo! e uns cantores sem obra, mas não consegue encontrar nenhum artista verdadeiramente popular, daqueles que lotam estádios e rodeios e que, apesar da pandemia, ainda hoje vivem do contato direto com o público. Artistas sem mestrado na UFRJ e que a "História da Música Brasileira do Século XXI", a ser escrita por um ex-presidente da UNE qualquer, ainda vai chamar de fascista. Ou melhor, de fascistÃO - para caber na rima.
Outro dia, comentando assim à toa uma releitura de Machado de Assis na qual Capitu e Bentinho se tornam swingers, disse que é inegável a impressão de decadência, decadência, decadência. Para onde quer que se olhe, decadência. Um bom amigo me repreendeu, dizendo que eu parecia o avô dele falando. Quero só ver se a reprimenda se manterá depois que ele ouvir/assistir a "Desgoverno".