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É dia 1º de maio. Feriado. Faz um dia lindo em Curitiba, embora a previsão do tempo fale em tempestades logo mais. A vida segue seu curso anormal de pandemia. Aqui e ali uma moto sobe a ladeira irritando os cachorros, acordando os moradores de rua e ensurdecendo um casal que saiu para passear de máscara e luva.
Até que, em algum lugar, alguém começa a bater panela e a gritar “Fora, Bolsonaro!”, “Fora, fascista!”. Ou será golpista? É um samba improvisado de uma nota só (e uma nota errada, de acordo com meu ouvido absoluto), entoado por um único e solitário manifestante que, alheio ao céu azul e ao necessário dia de descanso das pessoas ao redor, se considera capaz de mudar o mundo batendo panela.
No mundo ideal deste personagem, sua indignação sonora é ouvida. Não só pelos vizinhos incomodados que só queriam estar assistindo a uma série ou a um filminho, comendo pipoca e recuperando as forças para a semana pós-feriado. Mas principalmente pelos “donos do poder”, pelo “establishment”, pelos “fascistas, golpistas, genocidas”. Ou, como ele acabou de berrar agora mesmo, pela “Besta”.
Neste mundo de fantasia, a panela não é apenas um instrumento de protesto improvisado. Ela é como uma verdadeira lâmpada mágica daquelas que encantaram nossas infâncias. De dentro da panela de fundo todo retorcido pela fúria política do vizinho raivoso sai uma fumacinha que se transubstancia no gênio Tramontina. Que não oferece ao nosso personagem furioso três desejos nem nada. O gênio é inteligente o bastante para saber o que o manifestante quer.
— Só, por favor, pare de bater panela, meu filho — pede o gênio.
— Mas-bater-panela-é-um-instrumento-legítimo-de-expressão-política-contra-esse-governo-fascista-e-genocida-de-extrema-direita... — diz o sortudo que não percebeu que tem a sorte diante de si. O gênio Tramontina simplesmente estala os dedos e o manifestante se cala. Porque gênio nenhum é obrigado a ficar ouvindo asneira.
Logo em seguida, toca o telefone na casa do manifestante. Ele, meio atordoado, sem entender direito o que já aconteceu, deixa a panela de lado e, apenas com o olhar, pede permissão ao gênio, que assente. É um desses telefones antigos, pretos, de disco mesmo. O manifestante diz a todos que é uma relíquia, mas a verdade é que ele não tem dinheiro para comprar um aparelho melhor, coitado.
Do outro lado da linha, é o Presidente. Sim, o Presidente. Aquele mesmo que, ainda há pouco, o manifestante chamava de fascista, genocida, nazista, golpista, e cuja renúncia ou deposição exigia ao som desagradável de uma panela trans que fez a transição para tamborim. O manifestante não acredita, pensa que é trote e abre a boca para xingar quem quer que esteja do outro lado da linha. Mas da sua boca não sai som nenhum. Poderes de gênio, sabe como é.
O Presidente, num tom de voz muito educado, diz ao manifestante do panelaço solitário que ele tem razão.
— Eu andei ouvindo seus argumentos, sabe, meu jovem. E você tem razão. O tum-tum-tum realmente me convenceu. Eu sou um fascista. Um ser deplorável. Nem eu me aguento. E sou obrigado a agradecê-lo por me fazer ver isso.
De um canto, o gênio Tramontina abre um sorriso cheio de soberba.
— Por isso eu resolvi renunciar. Ou melhor, resolvi pedir meu próprio impeachment. Melhor ainda, fiel ao meu instinto golpista, algo que você apontou com toda a perspicácia de seus gritos esbaforidos, dei um golpe em mim mesmo, me destituí e agora estou aqui, ajoelhado no milho, reconhecendo todas as minhas falhas e, sinceramente, me perguntando como um ser tão abjeto quanto eu foi capaz de...
O batedor de panela solitário não consegue esconder a alegria por ter mudado os rumos do país munido apenas de um instrumento de percussão improvisado, meia-dúzia de xingamentos e muita, mas muita indignação mesmo. Ele desliga o telefone e olha para o gênio Tramontina, que lhe devolve a voz, mas num tom bem mais baixo e civilizado.
— Eu mudei a história — diz ele, todo orgulhoso. — Mãe, vem cá ver o que eu fiz!
O gênio Tramontina faz que sim com a cabeça e, antes de voltar à condição de ser mitológico, pergunta ao manifestante indignado:
— Satisfeito? E agora?