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Não sei se você chegou a ver, mas na terça-feira (27) publiquei um texto intitulado “O que será de nós se Lula vencer as eleições”. O texto se baseava apenas na pergunta que me fazem insistentemente há algumas semanas e na minha tentativa de responder a essa questão que, antes de ser eleitoral, é existencial.
Qual não foi minha surpresa, quando, dois dias mais tarde, recebi um e-mail do Tribunal Superior Eleitoral exigindo que eu escrevesse “um texto de igual teor sobre as mazelas que se abaterão sobre o povo brasileiro no caso de uma vitória do presidente fascista Jair Bolsonaro”? Mentira, claro. Não recebi e-mail nenhum. Mas só o fato de por um segundo você ter acreditado em mim mostra bem a que nível chegou a confiança nas instituições.
A verdade é que nunca tinha parado para pensar no que será de mim/nós se Bolsonaro vencer as eleições porque tenho o privilégio (mais um, além de ser cristão, homem, branco, de classe média, marido da Dani, pai do D., dono da Catota e ainda por cima bonito!) de viver rodeado por pessoas que ou não comungam do antibolsonarismo psicótico ou disfarçam muito bem. Estou aqui tentando puxar pela memória, mas não me ocorre mesmo nenhum amigo que tenha qualquer receio de enfrentar mais quatro anos de Bolsonaro.
“Nem entre jornalistas?!”, você me pergunta, incrédulo. Esse, aliás, é o grupo do “disfarça bem” a que me referia. Mas não, não entre eles. Mesmo os mais petistas dos jornalistas que me cercam sabem que o fascismo de Bolsonaro é imaginário, enquanto o ressentimento de Lula é bem real. Os petistas, jornalistas ou não, acreditam que surfarão nesse ressentimento. Mas só porque faltaram à aula de história na qual se ensina que as revoluções devoram seus filhos. E eu estou velho cansado para lhes ensinar isso.
De qualquer forma, lá vou eu fazer o exercício de imaginação. Me sento na posição de índio, mantenho a coluna bem reta, respiro fundo, sinto a calma me invadindo e, com algum esforço, escuto até mesmo o som de uma cítara ao longe. Pronto. Agora já posso prever um futuro segundo mandato de Bolsonaro e. Mas o que é isso que estou vendo, meu Deus?!
Resposta
Calma! O que me assusta nessa fantasia não é massacre de trans nem modernos porões da ditadura. O que me assusta na possibilidade de termos Bolsonaro por mais quatro anos no poder é a perpetuação do fascismo imaginário, com sua promessa cotidiana de golpe; os falsos escândalos do tipo se-colar-colou; as CPIs do Nada e do Coisa Nenhuma; o chororô dos artistas; as conjunções adversativas; a rejeição estética, etc. Sinceramente, não sei se tenho saúde para aguentar mais versões do “Hino ao Inominável”.
Sem meias palavras: se Bolsonaro vencer a eleição, não acredito que a cruz de cada um fique necessariamente mais leve. Porque o Brasil continuará sendo. Apesar da reeleição de Bolsonaro, o espírito progressista insistirá em questionar os valores da tal cultura judaico-cristã. A gasolina talvez fique mais barata por um tempo, para voltar a subir de acordo com o preço internacional do petróleo – e as pessoas continuarão sem entender como funciona o mercado de commodities. Grandes artistas do século XX morrerão e lamentaremos não ter substitutos à altura. Sem falar que o prefeito de Curitiba insistirá na instalação de radares pela cidade.
Mas, à semelhança da resposta que dei para a pergunta “O que será de nós se Lula vencer?”, me sinto obrigado a dizer que: lutaremos e sobreviveremos. Ouviremos o mais recente megassucesso da Anitta e escreveremos uma crônica. Participaremos do curso Tecnoturbomachofascismo 2 – Agora o Inimigo é o Mesmo, de Márcia Tiburi. Leremos qualquer outro livro que passe na caatinga, com personagens infantis tecendo altas considerações ideológicas contra o capitalismo. Assistiremos a filmes que santificam terroristas de esquerda que te matavam pelo teu bem. E assim por diante. Ou seja, lutaremos.
(Sei que não fazia muito sentido manter a primeira pessoa do plural depois de “sobreviveremos”, mas achei que a mudança para o singular seria brusca demais e soaria mal. Mas você sabe que estou falando que eu ouvirei Anitta, farei o curso, lerei o romance-tese e assistirei ao filme intelectualmente desonesto, né? Você não. Você só terá o prazer de continuar lendo minhas incursões por essas festas estranhas com gente esquisita).
E sobreviveremos, estimado leitor. Ah, se sobreviveremos! Riremos num dia e choraremos noutro. Reclamaremos do excesso ou da falta de trabalho. Ralharemos contra as gerações mais novas. Se continuar havendo perseguição e ativismo judicial no STF, denunciaremos e escreveremos sátiras e comporemos paródias. Dos planos que continuaremos fazendo, uns se concretizarão e outros não. Nosso amor será retribuído aqui e rejeitado ali. Sobreviveremos - até não sobrevivermos mais, porque este é o curso natural das coisas.