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Ainda na terça-feira (23), enquanto a entrevista do presidente Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional estava fresquinha na memória, me peguei imaginando como seria a entrevista de Lula ao telejornal – e com os mesmos entrevistadores. E imediatamente pensei que, naquele momento, alguém estava tomando decisões muito importantes sobre o tom da entrevista com o ex-presidiário. A começar pelo uso ou não desse termo (spoiler: não vão usar).
O dia transcorreu normalmente. Muito trabalho, graças a Deus. A Catota aprontando das suas. Mulher me dando bronca por alguma coisa errada que eu fiz (desculpe!). Ideias se acumulando no meu bloquinho de anotações. Boas risadas com os amigos. E, no meio de tudo isso, ela, a pervasiva e um tantinho quanto incômoda imaginação. Será que William Bonner e Renata Vasconcellos seriam corteses e generosos com Lula? Ou será que seriam arrogantes e agressivos? Haveria sorrisinhos sarcásticos ou rolariam lágrimas? Lula levaria a água ou aceitaria a que lhe servissem?
Aí me dei conta de algo que talvez seja óbvio para o leitor. Mas é que sou distraído mesmo. Daí a surpresa ao constatar que, no caso da entrevista de Lula ao Jornal Nacional, os entrevistadores tinham se tornado mais importantes do que o entrevistado. E olha que estamos falando de um ex-presidente que ocupou o cargo durante oito anos, sobreviveu intacto ao julgamento do Mensalão, elegeu a sucessora e passou 600 dias preso. Numa cadeia de luxo, vá lá. Mas ainda assim preso. Por corrupção e lavagem de dinheiro. O que estava em jogo não era a postura do candidato, e sim a dos entrevistadores diante dele.
Sejamos sinceros: ninguém está interessado no que Lula tem a dizer. Se é que ele tem algo a dizer. Quem é petista é petista até debaixo d’água. Quem não é, dificilmente se tornará por encanto da retórica lulista. As pessoas só estão interessadas em analisar a postura de William Bonner e Renata Vasconcellos. Que insisto em escrever com a consoante dobrada, mas que talvez seja com um “l” só. Deixa eu ver aqui. Ufa.
Poc, poc, poc, poc, poc. A pipoca ficou pronta. Se serei capaz de assistir à entrevista, escrever e comer ao mesmo tempo, não sei. De qualquer forma, peço antecipadamente desculpas por eventuais erros. Qualquer coisa, você já sabe: a culpa foi da pipoca.
Como foi a entrevista
Lula parece nervoso. Esfrega as mãos enquanto Bonner explica a entrevista. Renata está sorridente. Não diria simpática. A entrevista começa falando sobre corrupção. "Portanto, o senhor não deve nada à justiça", diz Bonner. A pergunta se alonga, cheia de ressalvas. Lula olha de baixo para cima. "Como esses escândalos não vão se repetir?", pergunta. Lula agradece a oportunidade de falar sobre o assunto.
"Foi no meu governo que a gente criou...", começa Lula, dando origem a uma curiosa narrativa: a de que ele foi o responsável pela própria prisão. Nenhuma interrupção. Nenhum confronto. A voz rouca de Lula espanta a Catota. Minto, foi um mosquito que atraiu a atenção dela. Lula aponta o caráter político da Lava Jato e ataca Sergio Moro. Nenhuma interrupção. Nenhuma interrupção ainda. Nenhuma interrupção.
Oiando nos óio do povo brasileiro, Lula promete combater a corrupção. Lula, que ficou preso quase 600 dias. Lula. Educadamente, Bonner insiste no tema da corrupção. "Como o senhor pode assegurar que a corrupção não ocorrerá?", insiste Bonner. Insistência estranha. Lula, por sua vez, insiste na ideia de que ele foi o responsável pela própria prisão. Sem ele, a corrupção correria solta. Imagina!
"Eu poderia fazer decreto de cem anos. De sigilo. Sabe, o que está na moda agora", diz um Lula que parece perdido no argumento. Será que a retórica e o "carisma" serão capazes de seduzir o telespectador? William Bonner toma a dianteira novamente. Calmamente, com aquele tom condescendente, mas não sarcástico, ele insiste na corrupção e pede de Lula uma confissão de que o PT se envolveu com a corrupção. Lula critica as delações premiadas. Tergiversa. Não reconhece nada.
Bonner insinua uma interrupção e até um sorrisinho de sarcasmo. Aí Lula critica a Lava Jato e culpa a operação por desemprego, desinvestimento e até queda na arrecadação. Não acredito que estou ouvindo isso. Lula está culpando a Lava Jato por falência de empreiteira. Não acredito nisso. Bonner finalmente passa a palavra para Renata Vasconcellos e "defende" a Lava Jato.
Uma Renata Vasconcellos sem nenhum vestígio de sangue nos olhos pergunta a Lula sobre... lista tríplice da PGR. Fico imaginando o povão assistindo a isso. Enquanto Lula responde qualquer coisa, tenho tempo para refletir sobre a estratégia de comunicação desse jornalismo aí. Xi, agora Renata Vasconcellos levantou a bola para Lula falar sobre a relação entre o procurador-geral e Bolsonaro. Lula não aproveita a deixa.
"O senhor vai manter mistério sobre assunto tão fundamental?", insiste Renata Vasconcellos. Tão fundamental? Lista tríplice é tão fundamental? A pergunta se estende. Outra bola levantada por Renata Vasconcellos: intervenção na Polícia Federal. Não acredito no que estou vendo - de novo. Lula não aproveita novamente e evoca a prisão do irmão. Ele se diz injustiçado. Fala em garantia da democracia. Não é interrompido.
"Quero ser melhor do que fui", diz Lula. Bom slogan. Elogia Alckmin. Não acredito no que estou vendo - pela terceira vez. Bonner decide, então, falar sobre algo que fala ao povo: o bolso. Pessimista, Bonner pergunta como Lula pretende recuperar a economia. Os números mostram o contrário, penso. Lula compara o Brasil de 2002 ao Brasil de vinte anos mais tarde. Cita vários números que farão a alegria das agências de checagem. Lula se diz o responsável por diminuir a inflação no Brasil. Os entrevistadores deixam Lula falar à vontade. "Credibilidade, previsibilidade, estabilidade", diz Lula. Outro slogan. Que ele tem tempo de sobra para explicar. Sem interrupção alguma dos entrevistadores.
Bonner continua falando da economia. O desastre Dilma é mencionado. A pauta é: intervencionismo na economia. Mas Bonner não explica isso para o Homer Simpson. "Sábado eu estive com a Dilma...", diz Lula, contando uma anedota para não criticar Dilma Rousseff. Ele quase chora ao elogiar a ex-presidente. Ele está elogiando o governo Dilma. Não acredito nisso IV. Lula culpa Eduardo Cunha e Aécio Neves pelo desastre econômico de Dilma.
"Seu governo vai ser diferente do de Dilma?", pergunta Bonner. Boa pergunta. Lula tergiversa. Diz que vai governar do jeito que bem entender. Cita outro slogan. Diz que a obsessão dele "é porque é possível recuperar esse país". Papinho mais velho do que andar para frente. Política velha. Bonner cita números para atestar a falência do Brasil sob o governo Dilma.
"Se tem uma coisa que eu sei fazer é cuidar do povo", diz Lula. Novamente, sem ser perguntado, ele evoca o nome de Alckmin, exaltando sua capacidade de diálogo. Renata Vasconcellos insiste em assuntos absolutamente desinteressantes para o espectador: Centrão. Para compensar, ela menciona o Mensalão. "O Mensalão é mais grave do que o 'orçamento secreto'?", pergunta Lula. Renata não responde a resposta óbvia: claro que é! Lula, então, defende o Centrão. Boa oportunidade para Renata perguntar se Lula, então, concorda com Bolsonaro. Mas não há interrupção.
Lula defende a imprensa livre. Não acredito no que estou ouvindo - não me canso de dizer. Lula volta a atacar a corrupção. Só falta se dizer Caçador de Marajás. Ah, agora Renata diz que não há como comparar o Mensalão ao "orçamento secreto". Ufa. Lula diz que Bolsonaro é refém do Congresso Nacional. "O Bolsonaro parece um bobo da corte", diz. Aí Lula começa a dar aula de como Bolsonaro deveria se relacionar com o Congresso. Lula fala em LDO. O espectador lembra o que é LDO? Eu lembro?
Lula ri. Tenta usar todo o seu poder de sedução. Ninguém o interrompe. Lula olha diretamente para a câmera. "Não coloque rancor na urna", diz. Não, ele não está pedindo perdão. Bonner faz uma pergunta longa sobre a hostilização de Alckmin por parte dos petistas. "Nós não estamos vivendo no mesmo mundo. Estou até com ciúmes do Alckmin", diz Lula. Nunca vi um candidato elogiar tanto o vice. Mas minha memória não é das melhores, reconheço.
"O povo tem que voltar a comer um churrasquinho e beber uma cervejinha", diz Lula. Outro slogan. Bonner e Renata vão deixando. Como será que os espectadores estão vendo isso?, penso. Bonner fala da agressividade da militância petista. "Feliz era o Brasil quando a polarização era entre PT e PSDB", diz Lula. É teatro das tesouras que fala? "Militância é militância", diz Lula. Lula começa a comentar futebol, como se estivesse na mesa do bar. E cinicamente defende a paz na política.
Bonner se sai muito bem ao falar do "nós contra eles". Lula volta a comparar a política ao futebol. E aí defende a polarização. Desde que seja entre iguais, né, Lula?, penso. Lula, então, critica o regime chinês e cubano. Eu não acredito no que estou ouvindo - perdi as contas. "Eu me dou muito bem com o PSDB", diz, novamente escancarando o teatro das tesouras. Lula menciona Paulo Freire. Não tomei o Engov. Lula fala em fascismo e ultradireita. Não é confrontado por causa disso.
Renata Vasconcellos faz uma boa pergunta, mas num tom que você provavelmente achou calmo demais. E menciona o conflito entre o MST e o agronegócio. Lula começa a se autoelogiar. E diz que o problema dele com o agronegócio é a pauta ambiental do PT. Não acredito, etc. Lula defende o MST. Lula perde uma grande oportunidade de ficar calado e começa a atacar o agronegócio. "Qual será o papel do MST no seu governo?", pergunta Renata. Lula não responde e elogia o MST. Maior produtor de arroz orgânico do Brasil. Faltou falar que a produção é irrisória. Lula critica o armamento no campo.
Politica internacional, anuncia Bonner. Boa pergunta sobre as ditaduras de esquerda e o apoio de Lula. "A gente precisa respeitar a autodeterminação dos povos", diz. Lula não responde a pergunta de Bonner. Bonner, Lula não respondeu! Bonner, Lula não respondeu. Não respondeu. O tempo acaba. "Não gosto da palavra 'governar'; gosto da palavra 'cuidar'", diz Lula, repetindo mais um slogan. Agora vou publicar o texto e dormir. Boa noite.