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O Cérebro chegou naquele seu passo lento, gordo e acinzentado. E logo encontrou o Fígado à mesa, o celular nas mãozinhas amarelas de bilirrubina, com cara de poucos amigos e a camisa empapada de suor. Digo, bile. Ao redor deles, os pulmões volta e meia bufavam, resignados. O estômago se fartava. Os rins jogavam o jogo das cinco pedrinhas. E os intestinos se divertiam depois de mais um malcheiroso vazamento de gás.
— O que é que está acontecendo, Fígado? Tá passando mal? Tá de ressaca? Precisa de um Engov? — perguntou ele à glândula sempre suscetível à irritação.
— Você, Cérebro, mais do que ninguém deveria saber que Engov não serve para nada. Mas, se quer saber, tô passando mal, sim. Tô prestes a explodir aqui.
— E por quê, minha nobre glândula exócrina...?
— Mista! Eu me identifico como glândula mista. Respeite a minha complexidade bioquímica! Seu... seu... hepatofóbico!
— Tá. Que seja. Mas o que aconteceu, meu amigo mais sensível, mais melodramático e ligeiramente mais gorduroso? Por que você está assim?
Título
— Porque o Macalossi acabou de publicar um texto na Gazeta do Povo. Olha só o título. Me diz se não dá vontade de esganar o sujeito? “Jair Bolsonaro é causa finita, resta agora a direita escolher se o terá como tornozeleira”.
— Esganar por isso? Ué. Não vi problema nenhum. É só um título que contém uma opinião e que foi criado para chamar a atenção do leitor. Mas... Vamos analisar juntos o texto. Só me deixa pegar o meu café antes. — O Cérebro saiu corpo humano adentro (sic), as sinapses brilhando como se ele vestisse um terno de lantejoulas. E voltou ligeiro, o Cérebro. Todo animadinho de cafeína. — Pronto. Agora podemos começar. Me diga, ó Rei do Metabolismo. O que te aflige com esse texto do Macalossi?
Primeira frase
— Tudo, Cérebro. Absolutamente tudo. Que ódio! Olha aqui esta primeira frase. “Causa finita est”. Isso é latim! É a língua oficial da maçonaria do STF! Isso é Santo Agostinho sendo citado pra decretar que o Bolsonaro virou passado. Não dá! Isso é absurdo! Eu não aceito uma coisa dessas!
— Não entendo a revolta, Fígado. Sim, o latim tem um quê de pretensioso. E alguém pode até dizer que é cafona. Mas não é assim nenhuma mesóclise. E a ideia é simples: ele só está dizendo que o processo contra Bolsonaro acabou. E, em teoria, acabou mesmo. Fazer o quê?
— Mas não se fala uma coisa dessas, não se expõe um fato grave desses assim, sem indignação, sem apontar a injustiça, a perseguição, a tortura, sem xingar o Alexandre de Moraes, sem...
— Calma — interrompeu o Cérebro. — Continua lendo. Vai que a tua percepção muda.
Tornozeleira
— Muda coisíssima nenhuma! E eu lá tenho cara de quem se deixa convencer por qualquer argumento? Aqui, ó. Ele fala da tornozeleira eletrônica. Sabe quantas vezes o texto menciona a tornozeleira, Cérebro? Três.
— Podia ser pior. Podiam ser quatro.
O Fígado ignorou.
— Sabe por que ele faz isso? Porque ele gosta. É fetiche. Repare como o Macalossi mastiga a palavra com prazer. Tor-no-ze-lei-ra. Dá até pra ouvir ele gargalhando enquanto digita. E isso eu não aceito, tá me ouvindo? Não aceito!
— Sinceramente? Acho que você está exagerando. Pra variar. A tornozeleira é só um símbolo.
Surto
— Símbolo? Sei. E essa história de que o Bolsonaro teve um surto? O Macalossi escreve “surto” com uma alegria que beira a calúnia, Seu Cérebro! A calúnia! É uma agressão vil a um homem que já sofre perseguição implacável! Como é que a Gazeta do Povo mantém um sujeito desses? Vou cancelar minha assinatura!
— A Gazeta do Povo acredita no poder da razão e do diálogo. Você sabe. E, se não sabe, devia saber.
— Diálogo é o final do intestino grosso!
— Olha a boca, Fígado! Este é um jornal de família!
— Desculpe. Mas é que o Macalossi me tira do sério. Olha só a pergunta que ele faz em seguida. Prestenção: “Seria prudente que um homem com situação de saúde delicada e condicionado a potenciais efeitos colaterais de medicamentos sobre sua própria razão designasse um sucessor? Que tenha poder decisório numa questão de tal importância?”
— Qual o problema? A pergunta me parece extremamente pertinente. Se você soubesse que o Lula toma remédios fortes, que influenciam a já limitada capacidade de cognição, de tomada de decisão dele, você não estaria pedindo impeachment?
— Humpf.
Vigília
— Você precisa ler, Fígado. Com atenção. E alguma generosidade. Leia o que o Macalossi escreveu em seguida: “Se a alegação de surto é verdadeira, então seu [do Bolsonaro] juízo está em xeque. E isso, para o cálculo da política, é fundamental, por mais duro e impiedoso que possa parecer”. Isso é lógica. Lógica básica. E note o cuidado dele com o leitor ao escrever “por mais duro e impiedoso que possa parecer”. Possa parecer.
Mas o Fígado não cede.
— Aí o sujeito me sai com esta: o número reduzido de participantes da vigília convocada por Flávio Bolsonaro seria sinal de “um crescente clima de cansaço e desesperança entre seus apoiadores, mesmo os mais entusiasmados”. Apapú! Até a minha veia porta sabe que isso não é cansaço. Até meu ducto colédoco sabe que o povo tá é morrendo de medo de ser preso por, sei lá, terrorismo litúrgico. Cansaço. Onde já se viu? Patriota que é patriota não se cansa nunca!
— Mas não era você mesmo quem estava reclamando de cansaço outro dia, Fígado? Reclamando do excesso de más notícias. Das derrotas da direita. Da desesperança?
Lula favorito
— É que eu andei sintetizando muito angiotensinógeno nos últimos dias. Mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que o Macalossi termina o texto querendo me matar. Só pode. Ele diz, veja só, que o Lula é o favorito nas eleições presidenciais de 2026. Favorito pra quem? Pra instituto de pesquisa? Pra jornazista? Pra quem tem cargo na SECOM? Porque pro povo de verdade ele não é. Eu garanto!
— Acho que você precisa de óculos, Fígado. Não é possível. Leia de novo — pediu o Cérebro, sem jamais perder a paciência. — O Macalossi não diz que “o povo ama o Lula” nem nada do tipo. Ele diz que Lula é (ou está) favorito porque não existe oposição organizada. Isso é fato. A direita está perdida, dispersa, confusa, dividida.
Última frase
— Agora, a última frase. A frase cruel. A estocada na minha tríade portal. “A direita terá de escolher se vira a página ou se prefere ter Jair Bolsonaro como sua própria tornozeleira eletrônica”.
— Tá, mas o que te incomodou na frase?
— O que me incomodou é que isso não é análise. Isso é uma agressão. Uma violência estética. O Macalossi desumaniza e transforma o Bolsonaro num objeto que atrapalha. Como se o homem fosse o peso morto da direita!
“E não é?”, pensou o Cérebro. Mas não disse nada. Melhor não criar caso.
— Achei uma frase... espirituosa. Simples. Direta. Uma frase que oferece uma alternativa. Que propõe uma reflexão. E sabe de uma coisa, Fígado? Frases assim funcionam justamente porque irritam você. Ou você preferia ler que, sei lá, Bolsonaro é raio, estrela e luar, meu iaiá, meu ioiô?
— Ah, não é possível! Você foi cooptado pelo Sistema, só pode. Você também tá contra mim, Cérebro?!
— Moi? Jamais! Até porque se você morrer, eu morro também. — O Cérebro pensou que sempre existia a possibilidade de um transplante, mas achou melhor ficar quieto. — Mas, repare, Fígado. E eu digo isso para o seu bem. O problema não é o que o Macalossi escreveu, e sim como você absorveu o que foi escrito. Talvez você sofra de insuficiência intelectual hepática. Ou má vontade aguda. Já pensou nessa possibilidade?
Coração
Antes que o Fígado pudesse responder, porém, entrou o Coração.
— Gente. O que é essa gritaria aqui? O que está acontecendo? O Pâncreas tá reclamando...
— É o Fígado, coitado. Ele tá todo nervosinho só porque leu um texto do Macalossi.
— Deixe disso, Fígado. Agradeça. O Macalossi está fazendo o seu melhor. Ele só tem uma visão de mundo que não combina totalmente com a sua. Não significa que ele queira o seu mal nem nada. É mera discordância.
— Você só diz isso porque é bonzinho demais, Coração.
— Obrigado. Ainda mais agora.
Pisca-pisca de Natal
— Ainda mais agora o quê? — perguntaram o Cérebro e o Fígado em uníssono.
— Ainda mais agora que acabei de ler uma crônica do Polzonoff.
— O quê? O Polzonoff publicou uma crônica? Ah, não é possível! Assim eu vou ter uma cirrose! — disse o Fígado, saindo e pisando forte, deixando para trás um rastro fétido de bile.
— Oba, crônica nova do Polzonoff — disse o Cérebro, saindo em sentido contrário, as sinapsezinhas parecendo um pisca-pisca de Natal.




