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Há os que acalentam sonhos de eliminação dos que pensam diferente. Mas será que existe uma alternativa que não o silêncio forçado do adversário?
Há os que acalentam sonhos de eliminação dos que pensam diferente. Mas será que existe uma alternativa que não o silêncio forçado do adversário?| Foto: Pixabay

Chegou às minhas mãos na segunda-feira o comunicado de um conhecido dizendo que tinha rompido várias relações por causa de política e que não se arrependia disso. “São pessoas más”, concluía o missivista sobre aqueles que têm uma opinião diferente da dele em questões como racismo, transexualidade e pandemia, para em seguida desfiar todo um novelo de vitimismo. O conhecido, obviamente, adere ao consenso artificial do progressismo, do politicamente correto e do socialismo com únicos (e convergentes) caminhos para se alcançar a felicidade.

O tempo passa, o tempo voa e eu, sem querer, não consegui parar de pensar na mensagem dessa garrafa de arestas afiadas jogada ao mar. Na arrogância que é considerar a opinião contrária ou dissidente fruto de uma maldade inata. Lembrei da passagem do “quem não tem pecado que atire a primeira pedra” e me dei conta de que o problema está justamente em identificar o pecado em si mesmo e, depois, se relacionar de uma forma sadia com esse pecado. Ou seja, sem a culpinha burguesa expiada por meio do apedrejamento.

Pensei ainda nessa terrível tendência que temos de procurar culpados para os dissabores da nossa vida. Se fomos demitidos, a culpa é do Bolsonaro ou da Dilma. Se ficamos doentes, a culpa é da China ou, mais uma vez, de Bolsonaro. Se a tela do computador quebra é porque o capitalismo predatório economizou dez centavos na produção do equipamento - e também é culpa do Bolsonaro, por que não? Se não tenho uma conversa animada com meus amigos é porque eles são inerentemente maus. E assim por diante.

Ora, ninguém chega a quatro décadas de vida sem sofrer alguns revezes na vida e sem se arrepender de começar uma frase com “ora”. Por isso fiquei me perguntando quantas vezes, em meu processo eternamente incompleto de amadurecimento, usei do expediente de culpar os outros, conhecidos e até desconhecidos, de ascensoristas a deputados e até presidentes desta ou de outra república, pelos meus infortúnios menores e passageiros. Mas o pior viria em seguida.

Experiência de quase morte

Foi quando, ao passear rotineiramente pelas cercanias, como faço sempre que termino o trabalho, me peguei procurando uma solução para o impasse do convívio harmônico entre ideias diferentes. É, eu tenho dessas. Ando pela rua e às vezes acaricio um gato vira-lata, às vezes olho as moças de vestidos coloridos, às vezes bato um papo com um mendigo. Mas às vezes também me fecho em elucubrações que são becos sem saída. E quase morro atropelado.

Sério. Ontem eu andava pensando nessas coisas e estava praticamente chegando a uma conclusão que revolucionaria o convívio entre os diferentes e apaziguaria o coração do ressentido que deu origem a essa reflexão toda quando ouvi uma buzina que me salvou de um atropelamento, mas quase me matou de susto. Pedi desculpas a um motorista enfurecido com aquele pedestre vagabundo (palavras dele!) que não sabe por onde anda e segui com meu passeio. Mas a solução acabou se perdendo no emaranhado de sinapses, umas mais, outras menos úteis.

Antes da buzina e do susto, porém, eu pensava na solução que certamente passa pela cabeça dessas pessoas que consideram as outras más por pensarem diferente: a eliminação pura e simples. Sim, porque a alternativa à eliminação do homem “mau” seria a transformação dele, pelo convencimento, em homem “bom”. O que é inviável para uma pessoa que considera os adversários "pessoas más". E porque a transformação pela força, seja ela por meio de uma estadia nada agradável num campo de reeducação, de sessões de tortura ou do contemporaníssimo cancelamento, nunca dá certo.

Mas, se eliminarmos todas essas “pessoas más” que discordam da gente, o que teremos? É Paraíso ou inferno que se chama esse lugar? Imagine a “delícia” que seria abrir as redes sociais todas as manhãs e se deparar com aquele marasmo de concordância. Que seria sair para votar sabendo de antemão que o seu candidato, que todos concordam ser o melhor em tudo, está eleito. Que seria ir ao estádio e concordar com todas as substituições do técnico do seu time na goleada que ele sofreu para um adversário que jogou pior, mas teve sorte nos lances decisivos.

É na discordância respeitosa que o homem prospera. Sempre foi. João, é melhor semear aqui, diz o Joaquim. Joaquim, é melhor semear ali, diz o João. E juntos eles chegam a um acordo sobre qual o melhor lugar para semear. E assumem os riscos e a responsabilidade pela semeadura. E colhem os frutos bons ou maus de suas escolhas feitas com a melhor das intenções, mas nem sempre acertadas. Porque o erro também tem um objetivo nobre, que é o de ensinar.

Para isso, contudo, é necessário que haja, no João e no Joaquim, vontade humilde e sincera de aprender. O que me traz a uma pergunta que faço desde que me entendo por gente e subia as ladeiras do Bairro Alto para desafiar a morte na banguela – e sem as mãos: por que algumas pessoas estão sempre insatisfeitas com o que sabem enquanto outras se dão por satisfeitas com seu conhecimento a ponto de impô-lo aos outros?

— Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Olha por onde anda, seu maluco!

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