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Polzonoff

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"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Ai, que fome!

Os 5 minutos de greve de fome da minha mulher

GREVE DE FOME
Com fome, minha mulher é capaz de comer até a ampulheta. (Foto: Gerado com IA)

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O medo de que meu marido um dia acabe preso por escrever verdades sobre Alexandre de Moraes tem sido recorrente nos últimos dois anos. Há momentos em que esse meu medo se torna maior, e um deles aconteceu quando o Twitter foi banido do Brasil. Imediatamente fui tomada por outro de meus temores recorrentes: o de que eu precise fazer greve de fome para chamar a atenção do país, quiçá do mundo, para o absurdo que seria a prisão do titular deste espaço.

Antes de falar do medo da greve de fome, porém, permitam que eu descreva outra paúra que de vez em quando reforça a paranoia em torno de uma eventual (e inteiramente injusta) prisão do meu marido: a de precisar abrir a porta para a Polícia Federal às seis da manhã, poucos minutos depois de ter me levantado para alimentar a Catota.

Camiseta de político

Prevenida que sou, já comprei um conjunto de pijama e roupão que me confere um mínimo de dignidade para receber os policiais. (Só espero que eles apenas cumpram o mandado de prisão, sem revirar gavetas e fazer aquela bagunça toda). Não que minhas roupas de dormir sejam indecentes. Já passei da idade. Nem que eu durma com camiseta de político. De jeito nenhum.

É que ouvi dizer que, quando alguém morre, chega lá no Além vestindo algo parecido com o que usava quando deu o último suspiro. Mentira, provavelmente, e mais uma superstição que devo confessar ao padre assim que possível. Mas tenho certeza de que, ao chegar à porta do Céu, qualquer um que esteja vestindo camiseta de político será automaticamente barrado – mesmo que na estampa esteja aquele seu político preferido, seu salvador da pátria de estimação.

Greve de fome

Mas voltemos à greve de fome. O Brasil tem presos políticos. Se meu marido fosse preso pelo simples fato de escrever sobre o pesadelo totalitário que vivemos, ele também seria um preso político. E acabaria ficando na cadeia por muito tempo, sem direito ao devido processo legal e sem nem saber que crime cometeu, já que o crime teria acabado de ser inventado, assim como a pena aplicada.

Sem ter a quem recorrer (eu nem poderia tuitar sobre o absurdo da coisa toda e marcar o Elon Musk para pedir ajuda, pois não consigo me acertar com o tal VPN), restaria a mim uma saída drástica: a greve de fome. Iria para a frente da cadeia, armaria ali a minha cadeirinha de praia azul e diria em voz alta, caso já houvesse algum curioso por perto: daqui só saio com o meu marido livre – ou morta. O problema é que a minha greve duraria apenas cinco minutos.

Minuto um

Já de cara teria um delírio de grandeza e imaginaria que a imprensa – a pequeníssima parte que ainda presta e a multidão de urubus ávida por devorar este restinho de Brasil –  apareceria para perguntar o que eu estava sentindo. “Fome, claro, dã”, eu responderia. A presença da imprensa, no entanto, seria ótima, pois chamaria a atenção do mundo para a ditadura em que nos transformamos. Vai que o Trump me vê na televisão e manda os militares americanos invadirem o Brasil para nos salvar, não é mesmo? Dã. Se bem que avisei que era um delírio de grandeza.

Mas você sabe como é a imprensa. Não dá para confiar. Assim, não contentes com a minha resposta lúcida e serena, imagino que alguns jornalistas começariam a assassinar minha honra, indo atrás da minha família, amigos e colegas de trabalho. As manchetes gritariam: “Mulher em greve de fome trabalha no agronegócio e votou em Bolsonaro”; “Esposa de jornalista preso tem irmão negativado no Serasa”; “Formada em Federal, mulher em greve de fome cogitou votar em Lula em 2002”; “Liberal de extrema-direita, mulher que parou de comer já foi processada por inquilino”.

E assim por diante.

Minuto dois

Com medo das outras manchetes escandalosas que poderiam surgir, tentaria esquecer os ataques da imprensa (que de qualquer forma logo perderia o interesse em mim para cobrir o próximo factoide do Pablo Marçal) e me concentraria na greve de fome em si. Uma dúvida seria se posso beber água. Acho que sim, para evitar uma morte muito rápida.

O Gandhi bebia água, não bebia? Pegaria o celular para pesquisar e, já um pouco zonza, começaria a destrinchar a lista dos poderosos efeitos que a privação de alimento provoca no organismo – mas não sem antes dar uma conferida no link do grupo Filhos de Gandhi, que apareceria no topo dos resultados. Droga, agora estou com essa música na cabeça!

Minuto três

Organismo buscando glicose para manter o metabolismo e derretendo a gordura corporal? Excelente, conta ponto! Perda de massa muscular? Ruim, mas dá para encarar. Tonturas, enjoos, náuseas, raciocínio lento? Nada que uma mulher na minha idade já não conheça. Órgãos reduzindo a atividade até começarem a falhar? Aí já seria um pouco demais. Caso eu sobrevivesse, um problema renal crônico, por exemplo, seria bem desagradável.

E antes que eu me esqueça: ai, que fome!

Minuto quatro

Só esqueceram de mencionar lá no topo da lista o mau humor, sempre violento entre uma refeição e outra. E me lembraria (sem mesóclise!), então, de que meu marido acabou sendo preso sem trocar o sifão da pia da cozinha, que já estava criando raiz dentro da sacola da loja de materiais de construção, mesmo eu pedindo a ele, todo santo dia, que resolvesse o problema de uma vez, coisa de cinco minutos, vai lá e faz, tudo eu nesta casa, etc. Já arrumou o suporte do papel higiênico? E aquele varal para os panos de chão? Olha esse monte de farelo no lençol, Paulo. Já falei para não comer pão na cama!

Minuto cinco

A esta altura o mau humor já teria se transformando em revolta e num justo questionamento: será que meu marido merecia mesmo tanto sacrifício de minha parte? Arriscar minha vida, me expor desse jeito, imagine!, enquanto ele não lava nem a louça do café. Humpf. Enquanto ele diz que foi ao boteco com o Alexandre de Moraes. Humpf humpf.

Assim, no quinto minuto dessa epopeia famélica, eu colocaria minha cadeirinha embaixo do braço, passaria no pipoqueiro que já monta seu carrinho na esperança de aparecerem muitos curiosos, e sairia correndo com meu pacotinho de pipoca com bacon antes que a imprensa mundial chegasse, muito certa de que, uma vez preso, meu marido seria um companheiro divertidíssimo para aqueles que tivessem a sorte de dividir a cela com ele.

* Este texto foi escrito pela Minha Mulher.

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