Ouça este conteúdo
Curioso, isso. Sempre tive ojeriza à política e políticos. Desde criança. Me lembro de um vereador do Bairro Alto que volta e meia aparecia na minha rua para pedir votos e prometer o asfaltamento das ruas de cascalho. Havia algo de ridículo naquele homem. Ninguém acreditava no que ele dizia, mas ele dizia mesmo assim. E sempre com o sorriso canastrão no rosto.
Com o passar do tempo, a ojeriza foi se intensificando. Pelos grandes figurões da política nacional, sim, mas também pelos peixes pequenos da política paranaense, que sempre acompanhei com um saudável distanciamento. Requião me dá engulhos muito antes de ter degustado mamona, por exemplo. Greca violenta meu senso estético. Só para citar dois exemplos.
Com Lerner, contudo, foi diferente. Acho que Lerner foi o único político pelo qual nutri alguma admiração – sem jamais pôr a mão no fogo por ele (sou louco?!). Queria entender o porquê dessa admiração. Talvez porque ele tivesse sempre aquela cara de vovô adorável. Ou talvez fosse a fala mansa e aparentemente sensata. A hipótese de ele atiçar meu lado mais provinciano tampouco pode ser descartada. Nem o carisma puro e simples.
Família Folha e Dalton Trevisan
Só sei que, no final dos anos 1980, sem entender nada de política ou de progressismo ou de ecossocialismo, fui instruído a participar de um concurso de redação. O tema era a importância da reciclagem ou coisa que o valha. Tudo naquele esqueminha para “ensinar as crianças a pensarem criticamente”: introdução, desenvolvimento e a conclusão que sempre começava com a stalinista expressão “precisamos nos conscientizar de que”.
Doutrinações mais ou menos sutis à parte, o fato é que venci o concurso de redação. O que eu não sabia é que haveria diplomas e medalhas (devidamente perdidos) que seriam entregues por ninguém menos do que Jaime Lerner, acompanhado pela Família Folha, uns bonecos evidentemente ridículos, criados para incentivar a reciclagem na então “Capital Ecológica”.
Poucos anos mais tarde, contudo, Dalton Trevisan me apresentou ao outro lado dessa moeda toda faceira. Curitiba (e, por consequência, os curitibanos e seus representantes políticos) gozava da fama de “3ª melhor cidade do mundo para viver”, segundo um estudo qualquer da ONU. Foi nesse momento que aprendi a diferença entre realidade e propaganda, entre boas intenções com consequências não necessariamente boas, entre a capacidade e ambição de planejar e o caos implanejável e inadministrável.
“Basta morrer para virar santo”
Muita água passou por debaixo dessa ponte. Até que em 2011 peguei um avião no Rio de Janeiro e me sentei ao lado de Jaime Lerner. Cara-de-pau que às vezes sou, puxei assunto. Falamos basicamente de Millôr Fernandes, que tinha sofrido um AVC e estava internado. E aí me lembrei da admiração absurda que “a turma do Pasquim” nutria por Lerner. O próprio Millôr achava que ele se sairia bem como presidente.
Quando morre algum notável, os mais cínicos sempre correm para as caixas de comentários dessa Internetona de meu Deus para dizer que “basta morrer para virar santo”. Sim, há um bocado de hipocrisia em tudo o que falamos dos mortos. Críticas que fizemos perdem força. E cedemos à vontade (necessidade?) de exaltar sempre o lado bom da pessoa que se foi.
Em se tratando de um político que por acaso também era arquiteto, é ainda mais complicado. A admiração, se admiração há, ganha imediatamente contornos de bajulação, quando não de confissão de “culpa por associação”.
Evidentemente discordo desse espírito cínico de quem desrespeita os mortos para ganhar alguns likes nas redes sociais. Tirando aí os tiranos e psicopatas de sempre, a morte de alguém, até de um político, é sempre uma tragédia. E, no mais, pecados temos todos, uns mais e outros menos redimidos. Uma vez cessada a vida neste mundo, o momento é de sofrer, mas não por todas as maldadezinhas deixadas pelo caminho. O sofrimento é por todas as coisas boas que podemos realizar diariamente, toda a virtude que podemos demonstrar só existindo da forma a mais honesta possível.
Lerner, tanto como político quanto como arquiteto, deixou um legado. Não é pouca coisa, ainda mais num cenário em que proliferam renans, lulas e incontáveis lambaris ideológicos que só querem ver prevalecer suas ideias à força. Sim, todo legado é questionável. Mas deixemos para a Eternidade a tarefa de julgar. A nós, no momento, resta agradecer. Obrigado, Lerner, nem que seja por aquele “vai dar tudo certo” que você me disse a 10 mil pés de altitude E ao qual, infelizmente, não dei ouvidos na hora.