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Dia desses um leitor me sugeriu carinhosamente que eu desse atenção aos tipos urbanos, às reflexões à toa e às paisagens – temas que marcaram a crônica brasileira no já distante século XX. Não respondi na hora, mas respondo aqui que adoraria me permitir alçar voos mais poéticos, mas há uma série de empecilhos. A começar pelos próprios tipos urbanos, que se homogeneizaram. Repare: ninguém mais exibe despudoradamente suas adoráveis idiossincrasias. Ser diferente e esquisito (e, por isso mesmo, interessante) é politicamente incorreto.
Além disso, algo que (graças a Deus!) me impede de expor aí repugnantes e ridículas literatices é o fato de o leitor não ter nenhum interesse por elas. E não há nada mais arrogante do que jornalista que ainda tenta impor seus caprichos. Longe de mim fazer uma coisa dessas! Sou como aquela música de Chitãozinho & Xororó que diz que o artista vai aonde o povo está e, neste caso, o povo está num interminável comício. Isto é, o leitor só quer saber de política, política e política.
Sinal claro e inequívoco disso foi o velório ao qual estive presente no domingo, na feliz condição de homem vivinho da silva. Entrei, distribuí condolências a um monte de gente que não reconheci por trás da máscara, fiz uma ou outra piadinha para aliviar o ambiente e me posicionei de forma a, querendo, poder dar uma olhada na expressão do morto. Velórios nos transformam todos em filósofos – e comigo não foi diferente.
Em “A Ilíada ou O Poema da Força”, por exemplo, Simone Weil diz que “força” é aquilo que busca transformar alguém numa coisa. “No limite, a força transforma o homem numa coisa em seu sentido mais literal: um cadáver. Alguém está ali e, no minuto seguinte, não está mais”, escreve ela. Palavras que ganham outro sentido quando se está diante de um caixão aberto. Mas eu só queria citar isso para ilustrar as coisas estranhas que passavam pela minha cabeça durante o velório.
Uma péssima ideia
Eu estava lá, quieto, mas não exatamente tranquilo, todo concentrado nas minhas reflexões mórbidas, quando me vi cercado por três pessoas com as quais jamais havia trocado mais do que seis palavras e que, ao me saberem jornalista, me cobravam um posicionamento político. “Deixa de ser isentão! Você tem cara de quem é 13 confirma!”, me desafiou um deles. Outro, ainda mais ousado, disse em tom de brincadeira que acompanhava com assiduidade as bobagens que escrevo aqui na Gazeta do Povo. Levei como um elogio, claro. E dei outra olhadinha no morto - mortalmente alheio ao comentário passivo-agressivo.
Durante boas duas horas, fiquei ali sendo bombardeado por opiniões de todos os tipos. Eram pontos de exclamação disfarçados de pontos de interrogação e que exigiram de mim não um talvez, um quiçá, um quem-sabe, e sim um ponto final daqueles bem assertivos. Um ponto final capaz de encerrar a discussão como um nocaute ou, pior, um tiro certeiro. No mundo pós-cristão em que vivemos, no qual a força há muito suplantou a misericórdia, palavras e ideias servem para reduzir o interlocutor a uma coisa. A um cadáver. Obrigado, Simone Weil.
De vez em quando, me desviava de um petardo olhando para o morto. Dizer que o morto tinha uma expressão serena é mais do que um lugar-comum; é uma imprecisão daquelas que esfregam em nossa cara quão limitada é nossa capacidade de apreender e expressar o mundo. O morto tinha uma expressão de tranquila ausência. O morto tinha uma expressão de quem estava ocupado com coisas muito mais importantes do que o próprio funeral. Sinceramente, em alguns momentos jurei ter visto o morto contorcer ligeiramente os lábios, num riso caridoso que era um convite à alienação.
Ao meu redor, a discussão continuava. Mais interessado em descobrir o sentido da vida, eu pegava a conversa como quem acompanha atentamente um concurso de soluços argumentativos. “Só o Lula não prestou condolências ao Bolsonaro. É uma jararaca mesmo”, disse alguém. “Se a mãe do Lula tivesse morrido, o Bolsonaro deveria dar os pêsames?”, perguntou outro. “Nessas horas a pessoa tem que mostrar que é um ser humano. Com sentimentos. O Moro, o Ciro e até o Dória mostraram”, disse não-sei-quem-de-máscara. “Mas o Lula já disse que não é humano, que é uma ideia”, arrematou o passivo-agressivo, concluindo porque tem vergonha de ser petista e me deve um dinheiro: “Uma péssima ideia. Não concorda, Paulo?”.
Debate dadaísta
Sempre que ouvia meu nome, saía momentaneamente de um reino habitado por fantasmas que me ajudavam a entender a morte. Ao perceber que minha palavra era demandada, estudava rápida e desesperadamente as expressões ao meu redor. No caso, só nos olhos, sobrancelhas e testa, por causa da máscara. Que, além da coceira, tem o incomodo adicional de nos transformar em manequins mais ou menos inteligentes. Em coisas ou semicoisas, para usar hiperbolicamente o raciocínio de Weil.
E respondia a esmo “sim” e “não” e “talvez” e “veja bem”, como se estivesse participando de um debate dadaísta. Ao notar que por todos os lados meus interlocutores balançavam a cabeça (uns afirmativa e outros negativamente, uns me achando um gênio e outros um idiota), voltava a olhar para o morto e encontrar nele algum consolo.
“O que era para vocês continuarei sendo”, diz Santo Agostinho num texto sobre a morte distribuído aos enlutados. Antes de pedir licença e abdicar do direito a expressar minha opinião super-ultra-hiper relevantíssima sobre o tema da vez, olhei uma última vez para o morto – que àquela altura parecia cansado e entediado. “Pois é. Você sabe que vou acabar escrevendo sobre isso amanhã, né?”, perguntei, e fiquei ali uns segundinhos esperando uma resposta. Se eu disser que o morto fez que sim com a cabeça, dirão que esse calor todo afetou meu cérebro. E não estarão de todo errados.