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Há algumas semanas, durante a premiação do Grammy (“o Oscar da música”, como fazem questão de nos lembrar os clichês), um cantor cujo nome faço questão de não citar se apresentou fantasiado de diabo e cercado por demônios. Aplausos. Furor. Você talvez não, mas seu filho ou neto viram. Alguns provavelmente gostaram. Outros devem ter achado oh! ousado. E assim se corrompem os inocentes.
Na época, pretendi escrever alguma coisa. Cheguei até a rascunhar um texto em que falava da exaltação das nossas fraquezas como sinônimo de “beleza” quando, na verdade, a beleza está na forma como lutamos contra essas fraquezas. Mas esse é um processo antigo e tem a ver até mesmo com aquele que considero o mito fundador do modernismo e que chamo de “A Paixão Mundana de Van Gogh”. Mas deixei para lá. Falar das artimanhas do tinhoso é sempre desagradável.
Mas aí fiquei sabendo que, pelo segundo ano consecutivo, o cramulhão foi de alguma forma celebrado nas passarelas do samba. Outro clichê. Deu para perceber que é intencional, né? Em São Paulo, a Gaviões da Fiel exaltou o coxo; no Rio, o elogio satânico ao coisa-ruim coube à Salgueiro. As celebrações do ardiloso, ainda mais vindas de agremiações supostamente populares, conseguem ser mais despudoradas do que a nudez artificial de suas rainhas de bateria.
Se bem que, em termos cronológicos, dá para se dizer, sem medo de parecer comentarista de desfile de escola de samba, que o despudor físico e carnal (não confundir com Karnal) só fez abrir as portas para esse despudor que é assim o Everest, não!, a apoteose dos despudores: a adoração explícita da maldade. Das trevas. E, por consequência, a ofensa gratuita, compartilhada com milhões de espectadores, a Deus. E mais não digo.
Digo, sim
O satanismo sempre existiu. Sempre houve pessoas que se sentiram atraídas pelas ofertas mirabolantes do rebelde. E não é mesmo fácil resistir às tentações do canhoto. Dinheiro, fama, reconhecimento. Imortalidade, no sentido mais draculaniano da palavra. Mas essas pessoas sempre foram consideradas párias. Uma gente caída, digna de pena; uma gente perdida, mas também elas dignas do arrependimento e do perdão.
Essa condição marginal sempre foi um dos atrativos da diabofilia. Eis aí mais um truque do sem-nome: fazer com que as pessoas se sintam especiais e diferentes, especiais porque diferentes, ao adorá-lo. Taí a música “Simpathy for the Devil”, dos Rolling Stones, que não me deixa mentir. Não à toa, o satanismo sempre atraiu pessoas com certo “pendor artístico”. Até pela associação evidente entre o orgulho e a rebeldia que são a origem do mal.
Aliás, dá para dizer que o renegado esteve presente em toda a arte a partir de John Milton. Mas a motivação era clara: alertar para os perigos de se flertar com as forças subterrâneas. De “Fausto” ao heavy metal, passando por “Grande Sertão: Veredas” e o filme “O Advogado do Diabo”, são muitas as obras que tem o cão como protagonista. (O inferno de a “Divina Comédia”! Como pude me esquecer da “Divina Comédia”?!). Justamente para nos dizer: não permita que o diabo seja protagonista na sua vida.
Mas, a julgar pelo que se viu no Grammy e nos desfiles de escolas de samba, algo mudou. E é aí que o demônio torce o rabo. Parece que agora o djanho está se sentindo à vontade para se exibir ao lado de seus pupilos. E seus pupilos se sentem à vontade para pregar a antipalavra. Para elevar o pecado. Para sacrificar a alma no altar público da desgraça. A demonhofilia perdeu a vergonha. O senso do ridículo.
Medo? Não tenho muito, não. Obrigado por perguntar. Digo, estou vacinado e tomo doses de reforço todos os dias. Mas temo por meu filho e netos, que crescerão num mundo que dá como certo, como “fato científico” (sic), a inexistência de Deus, ao mesmo tempo em que ressalta e adora a existência do chifrudo. Aí complica.