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Por algum motivo que me foge à compreensão, um jornalista esportivo chamado Rica Perrone (prazer, Paulo) veio a público contar que passou por uma situação aparentemente absurda e revoltante. E vice-versa. Ele pediu comida pelo iFood e não desceu do apartamento para receber a encomenda. Por outra, obrigou o entregador a subir até seu andar para servi-lo apropriadamente. Nessa relação breve, os dois discutiram e a epopeia terminou com Perrone xingando o entregador.
A história chamou minha atenção por alguns motivos. O primeiro é o tom de indignação com que Rica Perrone narra o ocorrido. Como se tivesse sido vítima de uma grande injustiça. Uma grande ofensa do Universo. Só porque o entregador não quis subir até o apartamento para lhe dar a comidinha – um alfajor! – na boca. O detalhe é que o próprio jornalista conta que o motoboy temia ter sua moto roubada – eis o porquê de ele pedir que o cliente descesse para receber a encomenda. Me parece uma explicação mais do que razoável.
O segundo é a exposição voluntária do egoísmo, como se ele fosse um valor admirável. Uma virtude, como pressupõem os libertários guiados por Ayn Rand. Algo até digno de solidariedade – por mais contraditório que isso possa parecer e é. Rica Perrone se desentende com o entregador e o humilha simplesmente porque acha que o mundo lhe deve o mimo de ser alimentado como lhe convém. Porque “eu tô pagando”. O entregador, nesse caso, é mero instrumento de satisfação da sua gula – e não um ser humano digno de respeito e, por que não?, preocupação. E é aqui que entra o dilema-que-não-é-dilema a que me refiro no título.
Dilema
O dilema é, na verdade, uma escolha. Às vezes consciente, mas na maior parte do tempo irracional. Uma escolha que fazemos o tempo todo e que se resume a duas perguntas, uma seguida da outra: como tratarei essa pessoa que tenho diante de mim – seja ela um atendente de banco, um motoboy, um parente, um amigo ou um funcionário? Eu a tratarei com o respeito que ela merece ou exigirei que ela me trate com o respeito que acho que mereço?
E aqui vale lembrar que temos uma tendência absurda de exagerar no merecimento. Como se o mundo inteiro nos devesse deferência. Como se o que estou fazendo agora fosse sempre mais importante do que isso daí que você está fazendo. Como se meu trabalho fosse mais relevante do que o seu. Como se suas circunstâncias não interessassem; só as minhas. Como se minha classe social, meus títulos na parede, meu cargo ou minha fama servissem de salvo-conduto para subjugar todos os que considero inferiores.
Mas será mesmo livre o homem escravizado pela própria vontade? Aqui recorro a David Foster Wallace, que escreve: “A liberdade que realmente importa envolve atenção e disciplina e exige que sejamos capazes de nos importarmos de verdade pelas outras pessoas, e de nos sacrificarmos por elas o tempo todo, de várias formas pouco atraentes, todos os dias”. Lembrando que o mesmo DFW escreveu “This Is Water” – essa admirável epifania de que o outro existe e é bem provável que você desconheça as circunstâncias dele.
Nada mais distante da realidade, eu sei. Sobretudo num mundo onde prevalece a vontade do mais forte. Onde a autossatisfação antecede todo e qualquer sacrifício. Onde a preguiça é idolatrada e a generosidade é vista como uma vulnerabilidade abjeta. Onde o egoísmo infantil de receber a papinha na boquinha ou de se ver instantaneamente vingado é celebrado como um sinal inequívoco de sucesso. E onde o sucesso é necessariamente visto como produto da virtude. Onde a vontade de julgar, ou melhor, de condenar se sobrepõe à de compreender.
Em tempo
Rica Perrone (com direito a boné virado para trás e tudo) explicou recentemente que não é bem assim. Que a fala foi “tirada de contexto”. Que a história da desinteligência com o entregador do iFood foi contada há três meses e requentada agora por interesses obscuros. Talvez políticos. Que “eu só tratei mal o cara depois que ele me ofendeu”. Então tá.