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Paulinho Gogó, personagem de Maurício Manfrini. A arte brasileira de contar vantagem deveria virar Patrimônio da Humanidade.
Paulinho Gogó, personagem de Maurício Manfrini. A arte brasileira de contar vantagem deveria virar Patrimônio da Humanidade.| Foto: Divulgação

Qualquer sociólogo de botequim sabe e atesta com firma reconhecida: brasileiro adora contar vantagem. Qualquer tipo de vantagem. Vantagem amorosa, vantagem financeira, vantagem profissional, vantagem automotiva, vantagem política e, agora, vantagem sanitária. E, se der para botar aí um cadinho de vantagem moral no meio disso tudo, tanto melhor.

Um dos meios peculiares que o brasileiro usa para contar vantagem é o “acesso exclusivo à informação privilegiada, não, privilegiadíssima, mas fica só entre nós dois, mermão”. Dia desses, por exemplo, o Uber me contou que o tio do primo do amigo do namorado da veterinária do cachorro dele contou que “o governo” está aplicando aguinha nas pessoas e dizendo que é vacina. “Mas fica só entre nós dois, mermão!”, disse.

“Mas você pretende se vacinar?”, perguntei a ele, que logo em seguida disse que foi vacinado não uma nem duas, mas cinco vezes! “Só por garantia, né? Tem uns parça amigo meu que me arranjaram vacina por quinhentão. Foi caro, mas valeu a pena. Se o senhor quiser tenho o telefone deles aqui comigo. Mas fica só entre nós dois”, disse.

O hábito brasileiro de contar vantagem tem algo de irritantemente cômico, mas é preocupante em tempos de pandemia. Afinal, e ainda que a intenção tenha sido as melhores, imagina, eu só queria te manter bem-informado, neste caso quem conta um conto não só acrescenta um ponto como também espalha o pânico.

Repara. Depois de um ano e centenas de milhares de mortos, eu mesmo conheço uma pessoa de 105 anos que pegou Covid-19 e não teve nada e um jovem atleta de 29, tão novo, com um futuro brilhante pela frente, coitado, que pegou e morreu. A Margarete, você não tem noção, vive aí pra cima e pra baixo com aquele joelho podre dela, não sossega o facho, e até agora nada de pegar o micróbio. Já o Fabião, lembra dele?, tava enfurnado dentro de casa há um ano, pegou e empacotou. Comorbidade? Ele tava assim meio gordinho, mas fora isso nada.

Outra forma peculiar que o brasileiro usa para contar vantagem é demonstrando sua incrível capacidade de ligar pontos sem absolutamente nenhuma conexão entre si. Em qualquer situação, da política à pandemia, há sempre interesses ocultos, motivações espúrias, lógicas nunca antes aventadas pelos mais perspicazes filósofos, mas garantidas pelo brasileiro, subtipo típico. Aquele de calção caído e chinelo havaiana, se você preferir.

Na praia, conversando com o vendedor de caipirinha, fiquei sabendo, por exemplo, que a onda mais recente de Covid é culpa dos Estados Unidos que “tá (sic) injetando o negócio nas pessoas só porque o Bolsonaro não quis comprar as vacinas deles”. Três caipirinhas mais tarde, porém, ele já estava dizendo (ou eu estava ouvindo) que “não tem esse negócio de Covid nem nada. O senhor é jornalista? Então o senhor sabe muito bem que é tudo invenção da mídia pro Lula voltar e a gente ser obrigado a assistir novela feminista da Globo”.

A tudo isso reajo com riso. Menos em se tratando de vantagem moral. Aí essa vaidade brejeira do brasileiro típico perde a graça e se transforma só num ridículo repugnante. “Não aguento mais me despedir dos amigos queridos. Só hoje foram cinco”, diz o cara aqui ao meu lado na loja da Apple. Quase vomito.

Contar vantagem não é, para o brasileiro, apenas um lazer. É uma verdadeira necessidade. É seu oxigênio. Daí também porque vivemos tempos de exaltação. Imagina um país com 200 milhões de pessoas, do médico ao catador de latinhas, do taxista meio tantã ao influencer totalmente tantã, cada qual contando sua vantagenzinha. Só para provar para si mesmo que está vivendo algo especial – o que o torna, aparentemente, um escolhido por Deus.

Tire a vantagem fantasiosa do brasileiro típico, essa que lhe confere alguma estatura no amor, na profissão, na política e até no hospital, e dê-lhe apenas a realidade às vezes cruel e às vezes tediosa. Aposto R$10 como você o verá cair no chão, sufocado com a própria pequenez e irrelevância. Só para vê-lo se levantar logo em seguida e partir para cima do interlocutor, todo machinho. Tá pensando o quê? Brasileiro não é russo, não, e não vai dar uma de mosca-morta só porque o Universo é indiferente a ele.

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