Ouça este conteúdo
Ontem cometi um erro, pelo qual peço desculpas. Acordei e, ao me deparar com Caetano Veloso e Paulo Coelho politizando a morte do ator Paulo Gustavo, corri para o computador e escrevi um texto a respeito. Não segui, pois, uma regra mencionada pelo escritor Alan Jacobs numa newsletter recente e que fala da importância de se esperar 72 horas para se ter uma opinião sobre o que quer que seja.
“Pressuponha que tudo o que todos dizem nas redes sociais nas primeiras 72 horas depois de um acontecimento é produto de insanidade temporária ou efeito colateral de um psicotrópico”, escreve ele. “Ignore. Finja que nada foi dito. Preste atenção ao que eles dizem somente depois que três dias se passaram desde o evento”.
Como obedecer a essa regra sábia no jornalismo contemporâneo eu não tenho a menor ideia. A experiência me diz que as pessoas tomam conhecimento de um fato e, cinco minutos depois, exigem uma análise do fato. E, como o cliente tem sempre razão, é isso o que tento fazer neste espaço. Mas paga-se um preço por essa velocidade de reflexão.
A reflexão instantânea está sempre muito carregada de elementos externos ao fato. Cabe ao tempo descontaminá-la da raiva, da frustração, de alguns preconceitos tolos, dos efeitos da noite insone e até daquele mau humor insuportável que antecede as refeições. Por outro lado, esse tempo também permite que a pessoa se lembre de referências culturais amontoadas no sótão da memória e que talvez possam lançar luz sobre o fato analisado. Um filme, um livro, uma conselho como o de Jacobs.
A questão é que, cada vez mais, nos sentimos impelidos a ter uma opinião a jato sobre qualquer assunto, da CPI da Covid à derrota do PSG, passando por Big Brother Brasil, a mais recente declaração do presidente e o legado de um notável qualquer recém-falecido. O que me leva a perguntar: diante do computador ou do celular, nas redes sociais, quantos nanossegundos você leva para ter uma opinião sobre qualquer assunto?
E quantos meses, anos, décadas você leva para mudar de opinião? Ah, aí é que a porca torce proverbialmente o rabo. Parece que, uma vez sedimentada a opinião instantânea, e por mais equivocada que ela seja, não há laxante que dê jeito – como sabe qualquer um que comeu muito Miojo um dia. E, agora que a porteira foi aberta, vai passar a boiada das perguntas: por que nos apegamos com tanto afinco às nossas opiniões instantâneas, essas motivadas por manchetes ou tuítes? Por que as protegemos como se elas fossem a coisa mais maravilhosa e frágil que existe? Ops. Será que é justamente porque elas são frágeis?
Atitude alternativa
No caso específico do texto sobre a politização da morte de Paulo Gustavo, tivesse eu esperado umas horinhas a mais ele não veria a luz do dia. Não do jeito que foi escrito. O texto está bom, não ultrapassei nenhum limite ético e eu andava mesmo com saudade de escrever coisas como “narcisismo necrófilo duplo twist carpado”. Mas hoje, 24 horas mais tarde e despido da indignação (que, na verdade, era anterior ao fato), talvez tivesse optado por uma linha mais inspiradora. Como fez o juiz e escritor Eduardo Perez.
Num texto intitulado “É Preciso Rir para Exorcizar o Diabo”, ele começa citando Ariano Suassuna para atestar: quem gosta de tristeza (e raiva e frustração e noite mal dormida e mau humor de fome) é o diabo. E, sobre a politização da morte do ator Paulo Gustavo, usa ninguém menos do que o essencial Viktor Frankl para que percebamos que, em meio às palavras de um Caetano Veloso ou Paulo Coelho, palavras que nos despertam indignação porque expressam uma indigência moral intragável, houve palavras cheias de honra, sussurradas por pessoas que não são imortais da ABL nem nunca ganharam disco de ouro.
Diz Frankl sobre a bondade que esteve presente até mesmo em Auschwitz, um lugar ligeiramente pior do que as redes sociais e assombrado por um genocida de verdade:
"Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos, não deixam de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas".
Pois é. Eu bem que poderia ter esperado 72 horas e tomado “uma atitude alternativa frente às condições dadas”. Nem que essa atitude fosse o silêncio. Nem que fosse apenas exaltar as qualidades de Paulo Gustavo como comediante. Nem que fosse falando de todas as pessoas que sofreram a morte de um artista que admiravam, mas não a politizaram. Mas agora Inês é morta (espero que não de Covid-19).
Em todo caso, desculpe.