Era uma vez um reino onde as pontuações conviviam em harmonia. As vírgulas, essas danadinhas, se ocupavam de separar apostos, vocativos, orações e quaisquer outros elementos da frase que estivessem fora do seu lugar natural. Os pontos finais encerravam ideias. Enfáticos, os pontos de exclamação gritavam palavras de ordem! E as interrogações andavam de um lado para o outro, se perguntando por quê?, por quê?, por quê?
Não que essa harmonia fosse perfeita. Nunca é. As vírgulas, às vezes separavam, sujeito de predicado e verbo de objeto. Acontecia também de os pontos se amasiarem com as vírgulas; nesses casos, acabavam dando origem a uma criatura que não sabia muito bem para que existia nem se tinha hífen: o ponto-e-vírgula. Sem falar que ponto com ponto, um em cima e outro embaixo, era no mínimo isto: uma pouca vergonha. Já quando se enfileiravam os pontos finais...
De qualquer forma, conviviam bem e pacificamente, as pontuações. Inclusive aquelas menos privilegiadas, como os parêntesis (ou parênteses), os travessões – tantos os que se intrometiam do nada nas frases quanto os que davam voz aos personagens –, e as aspas, desde as “irônicas” até as que, reflexivas, andavam para lá e para cá se perguntando: “Qual a minha função neste mundo?”.
E assim o texto avançava sem maiores atritos, num encadeamento belo que era ao mesmo tempo lógico e musical. Tanto que, diante de um texto bem escrito, os leitores se tornavam espectadores dessa curiosa coreografia dos símbolos mágicos que botavam ordem nas frases e, aqui e ali, determinavam o ritmo e a modulação de uma voz íntima que gritava e perguntava: “Quando é que você vai chegar no 'até que...'?!”
Até que...
Até que se sentindo desvalorizadas e injustiçadas e determinadas a provar seu valor por meio do caos e da confusão as vírgulas primeiro decretaram greve fazendo com que todos perdessem o fôlego e tivessem que ler a mesma frase duas ou três vezes até entenderem assim mais ou menos. Depois, mudaram, de, estratégia, causando, uma, epidemia, de, soluços, que, lotou, os, hospitais, cujas, salas, de, espera, ficaram, cheias, de, gente, de, cabeça, para, baixo.
Foi então que o ponto final entrou em cena. Ele estava determinado a acabar com aquela palhaçada. Ponto final chamou a guarda de pontos de exclamação. E mandou que eles esmagassem as vírgulas rebeldes. As exclamações cumpriram as ordens. Foi um auê. De todos os cantos do texto era possível ouvir as explosões de bum!!!!! Os golpes de pow!!!!!!!!. Aqui e ali um crack!!!!!!! e um cataploft!!!!!. Sem falar nos agonizantes gritos de ai!!!!!!!
Das janelas, observavam a batalha campal as interrogações, cada qual perguntando de si para si: por que o autor está escrevendo isso? Será que este texto tem alguma coisa a ver com a realidade política no Brasil? Será que tem alguma mensagem cifrada para o Xandão? E se não tiver? E se eu não gostar? Será que sou burro? Por que a Gazeta do Povo publica uma coisa dessas? Tá sem assunto? Mandou o estagiário escrever? Será que a revolução vai durar muitos mais parágrafos ainda?
Bomba de Ctrl T + Del
Quando o escritor abriu o texto e se deparou com aquela balbúrdia ininteligível, levou um susto. “O que é que eu faço?” – perguntou ele, sem ouvir resposta. Sua vontade era a de lançar uma bomba de Ctrl T + Del, acabar com a briga generalizada e declarar ao mundo que jamais usaria pontuação novamente nem vírgula nem ponto final nem exclamação nem interrogação seria assim uma espécie de Saramago e talvez isso lhe rendesse um Nobel ou no mínimo um patético Jabuti por que não
Enquanto pensava numa solução, porém, a paz se fez sem que fosse necessária uma drástica intervenção autoral. O ponto final pôs o rabo entre as pernas e, com a ajuda de uma exclamação de alta patente, pediu: desculpa, pô! As interrogações calaram a cornucópia de dúvidas sem sentido. Sem sentido? E as vírgulas voltaram a fazer o que sabem fazer de melhor, seja lá o que for.
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