Um velho sábio já disse que “o mundo não seria necessariamente um lugar melhor se eu o mudasse para o que entendo como melhor”. Quando perguntado sobre a perfeição, esse mesmo velho sábio – tá, nem tão velho assim, apesar da barba branca e da barriga proeminente – sugeriu a um jovem discípulo: “Imagine que horrível seria o mundo como você o imagina perfeito”.
Me lembrei das palavras desse velho sábio outro dia mesmo, ao assistir à cena da desinteligência entre o deputado Douglas Garcia e a jornalista Vera Magalhães. Ou talvez você prefira uma sinopse diferente: era a cena heroica de uma donzela em perigo sendo salva das garras de um monstro por um cavaleiro improvável.
Sinapse vai, sinapse vem. Quando dou por mim, estou pensando em todas as decisões que tomamos apenas porque imaginamos, para nós e para nossos semelhantes, um mundo perfeito que precisa ser imposto aos outros. Um mundo de uma perfeição extremamente subjetiva e idiossincrática. E mais: quantas das palavras que escrevemos e das atitudes que tomamos não estão contaminadas pela certeza irracionalíssima de que a minha vontade, uma vez concretizada, mudará o mundo (ou ao menos aquela circunstância específica) para melhor?
Douglas Garcia, por exemplo, provavelmente imagina um mundo perfeito só dele. Um mundo onde não há espaço para jornalistas como Vera Magalhães. Que, por sua vez, imagina um mundo perfeito só dela, onde não há espaço para bolsonaristas e onde os tucanos cantam como se fossem sabiás.
Entra Emerson Royal
Além de subjetiva e idiossincrática, essa perfeição que imaginamos o tempo todo e que influencia nossas decisões tem um quê de ridículo. E é aí que entra o Emerson Royal – jogador brasileiro do Tottenham e craque do qual eu nunca tinha ouvido falar. No mundo que imagino pateticamente perfeito, o lateral-direito (eu pesquisei) marca um gol de bicicleta, no último minuto de uma final da Premier League. Depois da partida, porém, e diante daquele horizonte de microfones, o jogador não quer falar nem do resultado nem de sua jogada espetacular. Ele quer falar do escritor Javier Marías, que morreu no domingo (11).
"Marquei esse gol em homenagem a ele, que dizia que a vida é uma péssima escritora, caótica e absurda", diz Royal, jogando a gravata borboleta para a torcida adversária, que sai derrotada, mas leva para casa uma grande lição de vida, etc. Pois é. No mundo como eu o imagino perfeito, ridiculamente perfeito, a gravata borboleta faz parte do uniforme. Vai entender!
Repare que, embora eu soubesse quem foi Javier Marías, nunca li nada dele. Assim como nunca vi Emerson Royal jogar e se me mostrarem uma foto dele duvido que o reconheça. Mas, por algum motivo, tenho para mim que a cena de um jogador de futebol lamentando a morte de um escritor funciona como exemplo dessa perfeição subjetiva, idiossincrática e ridícula que buscamos quase que obsessivamente - e às cegas. Se bem que até eu estou um pouco surpreso com a mistura aleatória de Emerson Royal, Javier Marías e gravatas borboletas.
O Filho Pródigo
De volta à altercação entre o deputado e a jornalista, só porque posso e quero imaginei algo no mesmo sentido. Digamos que Douglas Garcia preferisse Paulo Mendes Campos e Vera Magalhães preferisse Otto Lara Resende. Indo além, digamos que houvesse uma plateia gigantesca disposta a acompanhar a discussão acalorada sobre o melhor cronista. Até que surge alguém e resolve pôr fim ao debate: melhor mesmo é aquele cara da Gazeta!
Nem tudo no mundo como eu o imagino perfeito é ridículo. Nele há também espaço para o humor, a contemplação, a mansidão e até para a ira justa - que não compreendo direito. No mundo como eu o imagino perfeito, os leitores riem do humor autodepreciativo que encerrou o parágrafo anterior. Nos postes do mundo como eu o imagino perfeito há alto-falantes dos quais jorram eternamente a voz de Ella Fitzgerald cantando "Blue Skies". No mundo como eu o imagino perfeito, não faz nenhum sentido a gente desperdiçar o sábado falando de um ex-presidiário que é candidato à Presidência. No mundo como eu o imagino perfeito estou, neste exato momento, escrevendo não sobre uma briga entre um deputado e uma jornalista, e sim sobre a Parábola do Filho Pródigo. Ou discutindo a ideia de ira justa naquela passagem em que Jesus açoita os vendilhões do templo.
No mundo como eu o imagino perfeito, Emerson Royal joga no Coritiba. E, na final do Mundial de Clubes, coincidentemente contra o Tottenham (só porque gosto do nome), marca um gol de bicicleta, um de falta, um contra (!) e outro olímpico, confirmando assim o Coxa como o time mais vencedor de todos os tempos. Só no mundo como eu o imagino perfeito mesmo.
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