Estou no Uber, a caminho do trabalho. Ao passar em frente à antiga Papelaria Requião, por acaso e uns vapores de nostalgia me lembro das muitas folhas de isopor que comprei nesta vida. Se bem que parece outra. Isopor esse que hoje em dia deve estar alimentando alguma tartaruguinha lá no Pacífico – penso e rio da piada boba e quando dou por mim me vejo novamente revoltado com aquela questão do ENEM sobre o agronegócio. Com o ENEM? É, com o ENEM. Me deixa.
Aí penso em escrever novamente sobre essa revolta cotidiana que se resume a um soco imaginário na mesa idem. Que não muda nada. Muito menos acrescenta. Que só dá úlcera e enlouquece. Em assim pensando, eis que no rádio começa a tocar Legião Urbana. “A Canção do Senhor da Guerra”. Vamos ouvir a introdução marcada pela bateria que sugere um desfile militar (ou é viagem minha?) e a guitarra semissuja, característica da semirrevolta classe média alta do semirrock nacional.
Pela data, 1985, de acordo com meu amigo Omar Godoy, vou chutar aqui que a música tenha sido composta por causa de alguma treta da Guerra Fria. Sei lá. Só sei que, depois de uns bons dez anos sem escutar a canção que... Para tudo porque o Omar está me explicando aqui que a música apareceu pela primeira vez num especial infantil da Globo que celebrava a passagem do Cometa Halley (oi?!).
Mas, como eu dizia antes de ser deselegantemente interrompido, depois de uma década sem escutar a canção incluída no disco Música p/ Acampamentos, fico prestando atenção à letra e... Olha só o que diz esse trecho, logo no comecinho:
“Já são tantas as crianças com armas na mão
Mas explicam novamente que a guerra gera empregos
Aumenta a produção”
Se a esta altura da crônica você colocou a música para tocar aí no seu Spotify, preste atenção ao estilo de Renato Russo. Ele não canta com a indignação que era de se esperar de um roqueiro pacifista, por mais contraditório que isso pareça. Não! Ele canta como se estivesse dando aula no Instituto de Economia da Unicamp. “Uma guerra sempre avança a tecnologia”, continua ele. No Uber, reviro os olhos dramaticamente. Mas o que importa é que aqui finalmente chegamos aonde eu queria.
Armas para exportação
Depois de uma ligeira tentativa de humor dizendo que guerra é guerra, “mesmo sendo guerra santa, quente, morna ou fria”, Renato Russo, com voz de Letícia Sabatella perdendo o sono por causa do conflito no Oriente Médio, pergunta como se declamasse o argumento anticapitalista mais-que-perfeito. Ou melhor, como se naquele momento, em meio a um monte de clichês e rimas pobres, lhe ocorresse a sacada geopolítica mais genial de todos os tempos: “Pra que exportar comida/ Se as armas dão mais lucros na exportação?”.
Para. Que. Exportar. Comida. Se. As. Armas. Dão. Mais. Lucros. Na. Exportação. Hein, hein?! Para quê?! Como é que ninguém pensou nisso antes! Inclusive vamos acabar com o agronegócio e investir tudo em megafábricas de armamentos que venderemos para o mundo inteiro. Aí, com os lucros dessa venda, e fomentando uma guerra interminável, com “belíssimas cenas de destruição”, a gente compra um monte de comida importada! E ainda protege o meio ambiente. Hein, hein?! Que tal lhe parece o raciocínio do muitas, muitas, muitas, muitas aspas mesmo, poeta?
“Não teremos mais problemas/ Com a superpopulação”, continua cantando, ou melhor, lecionando Renato Russo. Em 1985. Há 38 anos. Dez anos da criação do fatídico ENEM – que ano sim, ano também nos causa revolta com sua doutrinação escancarada, com sua ideologização pornográfica, com sua estupidez explícita. “E lembre-se sempre que Deus está/ do lado de quem vai vencer”, ironiza o muso da revolta adolescente de toda uma geração: a minha.
Ou seja, os professores cinquentões e quarentões de hoje, esses que ensinam para nossos filhos e elaboram as questões do ENEM, estão há quase quatro décadas ouvindo esse tipo de discurso raso e, francamente?, burro, pequeno, medíocre. Discurso que eles adornaram com umas referências bibliográficas aqui, umas aspas ali, e agora reproduzem para os mais novos. E que certamente será reproduzido para as próximas gerações, até que um milagre consiga interromper esse ciclo.
Pois é
“Ele tem razão”, diz o motorista, me tirando do torpor indignado. “Do quê?”, pergunto, como se não soubesse a resposta. “Pra que exportar comida se as armas dão mais lucro”, repete ele e o tom já mudou. A interrogação deu lugar ao assertivo ponto final. Num instante, a pergunta que era retórica se transformou em fato. Em lógica irrefutável. Em narrativa. Em verdade. Ele ainda fala na superpopulação, nas tartaruguinhas intoxicadas de isopor e na chuva de veneno. “Pois é”, respondo.
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