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Iconoclastia artificial

Ricky Gervais: quando rir do politicamente incorreto se torna obrigação

Ricky Gervais: as piadas com gatos são boas. Embora as do Whindersson Nunes sejam melhores. (Foto: Reprodução)

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Quinze minutos espetáculo adentro, paro de assistir a “Supernature”, especial de Ricky Gervais para a Netflix. Não é possível. Tem alguma coisa errada aí, digo para mim mesmo e para a Catota, que anda ausente das crônicas, mas continua aqui ao meu lado, me julgando com enormes olhos azuis. Insisto. Dez minutos se passam. Por que não estou me contorcendo de tanto rir dessas piadas tão politicamente incorretas?, pergunto para a felina, que abre um bocejão diante do meu questionamento ridiculamente humano.

A resposta talvez esteja na minha própria pergunta. Em “Supernature”, as piadas soam politicamente incorretas como que por obrigação. E delas se espera uma risada também obrigatória, como se o espectador o tempo todo tivesse que provar para si mesmo que não está ao lado da insanidade do identitarismo & outras modas contemporâneas.

Ao longo de pouco mais de uma hora, é como se estivéssemos diante de mais um comediante querendo posar de herói da liberdade de expressão. Mais um mártir incancelável da cultura do cancelamento. Mais um rebelde querendo chocar a plateia com sua ousadia iconoclasta. Talvez eu esteja ficando velho ou Gervais me tenha me pegado num mau dia. O fato é que, quando o espetáculo terminou, senti que o riso tinha se tornado um dever.

Um dever? Sim, um dever. É como se rir de piada com trans ressaltasse imediatamente meus valores conservadores, ainda que a piada seja fraquinha. Ricky Gervais, desconfio, parece ter percebido que há uma demanda – ironia das ironias! – identitária por parte daqueles que não se definem pela orientação sexual, raça ou eixo ideológico. E o que ele faz é tirar proveito disso, lançando ao espectador babão suculentos ossos de irreverência politicamente incorreta.

O curioso é que o próprio Gervais meio que assume o caráter farsesco da farsa (!) antes mesmo de subir ao palco, ao se fazer anunciar como “o homem que não precisava de nada disso”. Aí há duas opções para o espectador: ver o comediante como um abnegado defensor da liberdade de expressão, um protossanto que saiu do conforto de sua casa para mostra como é importante fazer humor sobre qualquer coisa; ou vê-lo como um artista que está fazendo aquelas piadas oh-tão-pesadas em troca de um caraminguá que nem vai lhe fazer falta.

O mais decepcionante é que, já no fim de “Supernature”, Gervais esclarece essa questão. Ele se confessa disposto a exibir uma enorme frouxidão moral em nome da piada e do riso. O que, na verdade, significa que ele usa essa frouxidão moral a fim de conquistar ainda mais fama, dinheiro e relevância no debate público. Os risos, se houver, são brinde. E a “honra da comédia”, o “caráter anárquico do humor” e a “luta pela liberdade” são apenas justificativas à toa, dessas tantas que a gente dá para nossos erros, dos mais insignificantes aos mais abomináveis.

No todo, deu para rir com sinceridade apenas da piada com o “Ling Ling”. E as piadas com gatos também são boas. Embora as do Whindersson Nunes sejam infinitamente melhores.

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