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Para Sêneca a virtude estava por aí, disponível a todos os que fizessem um esforço mínimo para encontrá-la.
Para Sêneca a virtude estava por aí, disponível a todos os que fizessem um esforço mínimo para encontrá-la.| Foto: Pixabay

A lenda diz que era Diógenes, o cínico dos cínicos, quem saía com uma lanterna na mão, em plena luz do dia, à procura de homens virtuosos. A diferença entre ele e Sêneca, provavelmente o maior dos filósofos estoicos, é que o tutor de Nero (logo quem!) não precisava de lanterna alguma para encontrar homens virtuosos. Porque para Sêneca a virtude estava por aí, disponível a todos os que fizessem um esforço mínimo para encontrá-la.

Por acaso, passei a semana passada lendo Sêneca. As divagações dele sobre a virtude são algumas das melhores coisas que já li e mudaram minha vida – para melhor, bem melhor. O estilo das traduções costuma ser truncado, o velho é bastante repetitivo e ao leitor contemporâneo tudo o que ele diz, sugere e aconselha pode parecer ingênuo demais. Mas não. É que Sêneca coloca o sarrafo da virtude lá no alto mesmo.

Foi assim, caminhando com Sêneca na cabeça, que andei pela feira na manhã gelada de sábado. Pegando uma coisa aqui, outra ali, e pechinchando só para não ofender o feirante que adora uma barganha, fui conversando e ouvindo relatos da mítica “vida real”. Não, não se preocupe, leitor. Não vou dar uma aqui de flâneur chato (pleonasmo). Nem vou “exaltar o extraordinário em meio ao mundano”. Pode continuar a ler sem medo de um ataque de narcolepsia.

Flores

Os relatos que ouço são todos mal-humorados. De gente que está pessimista, principalmente porque os governantes não dão sinais de que afrouxarão tão cedo as medidas restritivas. A conversa mais indignada eu tive com um idoso floricultor – ele disse que vai ser proibido de vender o produto na feira. Simplesmente porque um burocrata qualquer decidiu que isso vai ajudar a acabar com a pandemia.

Aí de repente percebo que todo mundo ao meu redor fica tenso e começa a olhar na mesma direção. Procuro o alvo da atenção e o encontro nas figuras mirradas, mas assustadoras, de dois fiscais da prefeitura. Aquele sorriso arrogante de quem se sente por cima da carne seca, sabe? A simpatia falsa de quem não vai hesitar em adverti-lo, multá-lo, apreender seu produto e, com a ajuda da pretoriana Guarda Municipal, até prendê-lo. Tudo para garantir o cumprimento de um decreto inútil, escrito por um zé-qualquer com base numa ciência aleatória e assinado por um governante acuado pelos oráculos do Ministério Público.

Os fiscais avançam pela feira para ver se não há aglomerações e se os donos da barraca desenharam círculos no asfalto novinho em folha (trunfo do prefeito para as próximas eleições, dizem) para garantir a distância entre os consumidores. Ninguém faz nada. Eu não faço nada. Mas o que poderia fazer? Tirar a máscara em sinal de desobediência, subir num caixote e gritar palavras de ordem contra o Fascismo Sanitário, aproveitar que já me pareço um pouco com o Dito-cujo e conclamar os operários do mundo a se unirem?

Então, como não poderia deixar de ser (até porque está lá no título do texto), Sêneca veio em meu socorro com todos os escritos dele sobre a busca da virtude. Não essa virtude que faz a moda por aí, com jovenzinhos quebrando tudo, se recusando a sofrer, publicando a mais recente boa-ação que vai lhes render milhares de likes no Instagram e desejando a morte dos que discordam deles. Sêneca fala das virtudes-virtudes, que são nada menos do que a manifestação da Graça no cotidiano.

Elas são várias e estão todas ao nosso alcance. Bem facinhas mesmo. E ainda assim, quantas vezes não optamos pela vilania simplesmente porque é mais cômodo? No meio da feira, observando um fiscal da prefeitura falando rispidamente com um senhor cuja máscara não cobria o rosto da forma certa, como consta nas regras da ABNT, penso em duas das virtudes mais difíceis de serem alcançadas. E que, por sinal, são as mais necessárias neste momento.

Resignação e perdão

A primeira delas é a resignação. É se perceber em meio a uma realidade desagradável contra a qual o indivíduo é impotente. E não se deixar abater por essa sensação de impotência. É aceitar que hoje o fiscal da prefeitura, com sua inseparável prancheta e o bloquinho de notificações, cercado por guardas e seus ameaçadores cacetetes, são miniversões de Nero vendo Roma pegar fogo e se regozijando com isso.

Lembro aqui ao leitor que a resignação virtuosa defendida por Sêneca não pressupõe desesperança. Ao contrário. Também é virtude a ser cultivada viver de acordo com a sabedoria daqueles que nos precederam: não há nada de novo sob o Sol e um dia tudo isso vai passar.

A segunda virtude é escassa e eu a considero nada menos do que o pilar fundamental da Civilização judaico-cristã que nos trouxe até aqui: o perdão. Que, neste caso muito concreto, palpável e revoltante, se traduz justamente em não se deixar levar pela revolta e pelo desejo de vingança. Afinal, quem disse que os carrascos, quando se deitam para dormir, não se lembram do último olhar desesperado dos enforcados?

Ao se deparar com o desespero próprio e alheio, vale a pena se lembrar de Sêneca e tentar distinguir o que é medo real e medo imaginário. E saber que a virtude transforma até o ser humano mais pisoteado por esse Estado impessoal e estúpido num herói capaz de suportar muito mais sofrimento do que imagina.

Porque apesar do prefeito Xis, do governador Ípsilon e do fiscal 0, sem falar no burocrata Zê (que do conforto de sua quarentena admira a exuberante paisagem do holerite pago também pelo feirante), logo as máscaras serão abandonadas, haverá festas, futebol e fogos de artifício, as flores voltarão a ser vendidas e, com um pouco de sorte, a virtude voltará ao seu cotidiano de mais triunfos do que fracassos.

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