A página em branco é perfeita. Em potencial, ela contém todas as palavras que quero usar para expressar todas as ideias possíveis e imagináveis para todo os leitores idem. E, no entanto, a página em branco, por mais perfeita que seja, é um vasto e inútil nada. Só depois que ouso fracassar sobre ela, usando palavras erradas para expressar ideias que muitos consideram igualmente erradas, é que a página em branco se torna imperfeitamente útil.
Pensei nisso ao acompanhar toda a discussão sobre Simone Biles, a ginasta que, preocupada com a saúde mental, desistiu de tentar uma medalha nas Olimpíadas de Tóquio. “Saúde mental é mais importante do que a vitória”, pontuou alguém com uma obviedade karnalesca. “Isso é um absurdo! É o fim da meritocracia! Da competitividade! Do espírito olímpico!”, desesperou-se outro com todos os pontos de exclamação possíveis.
De fato, o tal de “bem-estar mental” é, hoje, uma preocupação como nunca foi antes. Mais importante do que nossas ações neste mundo é ser feliz agindo. Daí a preocupação extrema com a felicidade no ambiente de trabalho, seja ele um escritório ou um ginásio de esportes. O raciocínio por trás dessa ideia é aquele papo de coach que você provavelmente conhece: “Ame o que faz e você não terá de trabalhar nem um dia”.
Mas, para além da moral questionável de se associar a satisfação pessoal ao trabalho, há nessa frase, ou melhor, nesse conselho alguns truquezinhos cuja análise vale a pena. O “ame o que você faz”, por exemplo, é propositadamente ambíguo e pode se referir ao ato de fazer ou ao produto dessa ação. A primeira leitura é a mais popular. Imagine um Chaplin em “Tempos Modernos”, mas todo felizão lá apertando os parafusos. A segunda leitura é mais, digamos, marxista. Imagine um metalúrgico todo frustrado, se sentindo explorado pelo capitalismo, mas ao mesmo tempo todo orgulhoso do produto do seu trabalho: uma Ferrari.
O outro truquezinho da frase é o que se sucede à conjunção aditiva. Afinal, quem disse que o trabalho em si é ruim e que o objetivo de todo mundo é viver como se não quisesse trabalhar nem mais um dia? Aqui se confundem duas noções perversas de ócio e trabalho: o primeiro como vício hedonista e o segundo como castigo divino.
Mas o mais importante não está contido na frase e, imagino, não foi um elemento de consideração na decisão de Simone Biles em sua escolha pela desistência. Estou falando dele, o retumbante, estrondoso, ridículo e necessário fracasso.
É pelo fracasso que aprendemos. É ele que permite que nos redimamos. Vitória, sucesso, medalha de ouro, promoção, aumento, aplausos, elogios, mais aplausos são ótimos. E todos nós já nos deliciamos nesse pote de mel da existência (toda referência a mel é, por algum motivo, cafona. Eu sei). Mas de uma vitória daquelas bem vitoriosas o que resta senão o orgulho algo vazio? Quanto aos aplausos, todo mundo sabe que um dia eles cessam. E sucesso é um conceito mais difícil de definir do que “felicidade” – como sabem todos os que se debruçaram sobre o “Dilema Van Gogh”.
(O “Dilema Van Gogh” é bem simples. Todo mundo sabe que o pintor morreu na miséria e sem reconhecimento. Mas, depois de morto, ele conseguiu ser reconhecido expressando justamente sua miséria – um termo que, aqui, uso em outros sentidos além do óbvio. Levando em conta isso, Van Gogh foi um artista fracassado ou bem-sucedido?).
Se pudesse, recomendaria a Simone Biles que tratasse de sua saúde mental perseguindo e domando o fracasso. Pisando fora do tablado, escorregando na trave, caindo de bunda. Fracassando mais. Fracassando melhor – como sugeria, no começo do século XXI, a escritora Zadie Smith. E, ao longo do processo, aprendendo, rindo de si, expondo-se ao mundo nunca como modelo de perfeição, e sim como um ser humano sempre falho, ridiculamente falho, suscetível a escorregões e topadas nas quinas da vida.
Afinal, não uso o verso de T.S. Eliot à toa. Para nós, há mesmo apenas o tentar. Ir para o palco e talvez desafinar. Saltar sobre o cavalo e talvez cair. Correr e talvez perder, não!, chegar em último. Escrever este texto e talvez ser mal interpretado, incompreendido ou ignorado. E o resto, amigo, ah, o resto (isto é, o sucesso, a fama, a fortuna, os elogios ou aplausos) não é da nossa conta, nunca está sob o nosso controle e raramente traz felicidade outra que não o prazer momentâneo com ela confundido. Mesmo.
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