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Nova e excelente animação da PIxar/Disney recorre a elementos gnósticos para falar do sentido da vida. Tem até David Foster Wallace!
Nova e excelente animação da PIxar/Disney recorre a elementos gnósticos para falar do sentido da vida. Tem até David Foster Wallace!| Foto: Reprodução

Assisti a “Soul”, a nova animação da Pixar, na antevéspera do Ano Novo. Um tanto quanto pessimista em relação às produções recentes do gênero, disse para minha mulher que nada disso tinha importância. “Só quero comer pipoca, beber refrigerante, assistir a um negócio de criança e rir um pouco”, confessei a ela, que mexia no celular e nem prestou atenção.

À medida que o filme avançava, contudo, eu não parava de interromper a história para perguntar à minha mulher, a certa altura já bastante irritada, como uma criança assiste a um filme desses. Digo, como uma criança se diverte com uma trama que envolve conceitos filosóficos e religiosos profundos, que bebe na fonte do estoicismo, do gnosticismo e até do davidfosterwallacismo e que usa referências desavergonhadamente adultas?

É quase como se os produtores não tivessem as crianças como público-alvo. O que é, evidentemente, uma bobagem. Desde “Toy Story” (ou talvez antes, sei lá), está claro que os idealizadores desse tipo de filme se esforçam para agradar às crianças, mas também aos pais que as levam ao cinema e não querem passar duas horas entediados, ao som daquelas musiquinhas sempre cantadas num tom algumas oitavas acima do que o ouvido razoavelmente maduro aguenta.

Se quero saber como uma criança assiste a “Soul”, e quero mesmo, é por uma curiosidade sincera de alguém que cresceu associando animações (daquelas antigonas, não necessariamente exibidas no cinema) ao sentimentalismo inerente à infância. Afinal, não posso (nem quero) voltar a ter o olhar infantil para esse tipo de animação. Mas gostaria de entender que mensagem uma criança absorve depois de assistir a “Soul”.

Antes de passar ao primeiro intertítulo, me ocorre agora que a aproximação entre as linguagens infantil e adulta pode ser sintoma de algo que vai além de uma estratégia mercadológica. Talvez o espectador adulto, desprovido de ferramentas que lhe permitam refletir detidamente sobre o sentido da vida, precise mesmo de uma boa dose de infantilismo e sentimentalismo para absorver certas ideias. Uma hipótese deprimente e talvez até mal-humorada de minha parte. Mas.

Gnose

Na condição de marmanjo, minha experiência diante de “Soul” foi bastante confusa. Terminei o filme cometendo de cara a ousadia de recomendá-lo imediata e entusiasmadamente aos amigos. Mas ninguém me ouviu. Com o passar dos dias, esse entusiasmo perdeu força. E o maior mérito de “Soul” deixou de ser o filme em si e passou a ser as muitas dúvidas que ele pôs em minha cabeça.

A primeira delas diz respeito justamente à opção das animações contemporâneas por personagens e temas que fujam do cansativo e anticriativo debate identitário. Nesse ponto, aliás, “Soul” é uma grata surpresa. Estava esperando todo um discurso racial em torno de um filme que, afinal, tem como protagonista um negro, músico de jazz (aliás, por que o personagem não toca soul, e sim jazz, é algo que me escapa totalmente à compreensão). Assim como em “Divertidamente”, porém, os roteiristas recorreram a conceitos abstratos para fugir da gritaria política por um ou outra cena que talvez não caísse bem nos ouvidos daqueles que politizam até o feijão com o arroz.

É uma saída inteligente, ainda que cansativa. E aqui entra o que, para mim, é o maior problema de “Soul”. A fim de satisfazer essa necessidade de tratar os personagens como ideias, e não como figuras reais (o que soa irônico numa animação, mas você entendeu), os roteiristas de “Soul” foram obrigados a recorrer ao grande sincretismo filosófico-religioso que atende pelo nome de gnosticismo.

E o pior é notar que o gnosticismo, que junta num mesmo balaio cem mil visões religiosas diferentes a fim de criar um todo que seja compreensível ao intelecto humano, é mesmo a única alternativa possível para uma história que fala de morte, pós-morte e até da vida pré-nascimento, e não quer se comprometer com nenhuma religião específica. E, tudo bem, sou homem feito, conheço alguma coisa do assunto e percebo em “Soul” os elementos gnósticos. Mas, novamente, que efeito tem isso numa criança ou até mesmo num espectador adulto cuja realidade metafísica esteja distante desses assuntos?

Que elementos gnósticos são esses? Assim de memória (sabia que deveria ter assistido ao filme com um caderninho à mão), me lembro da “centelha de vida”, conceito muito caro ao gnosticismo; dos entes sobrenaturais que se apresentam como figuras cubistas porque, de outro modo, o intelecto das almas pré-vida e dos espectadores seria incapaz de compreendê-los; da escada que leva ao Além. Ah, tem também a pré-vida que atende pelo nome de 22 e que há milênios se recusa a “encarnar”.

Sem falar nas “almas perdidas” que vagam por um limbo, na esperança de se verem resgatadas por um navio cheio de malucos-beleza que servem de conexão entre o mundo real e esse Além. Mas o texto já está grande e chegou a hora de falar do maior mérito de “Soul”.

Momento catártico

Por outro lado, “Soul” é magnífico ao questionar o que nós, adultos contemporâneos, entendemos por sucesso. Ou melhor, por uma “vida realizada em todo o seu potencial”, para usar um jargão de coach. E aqui peço antecipadamente desculpas ao leitor, porque sinto que haverá spoilers.

Já no fim do filme, Joe, o professor de música cujo sonho é fazer parte de um quarteto de jazz, percebe que a aceitação que ele tanto perseguia na verdade estava distante de seu “propósito de vida” – algo que ele teria escolhido entre infinitas opções quando ainda era uma pré-vida (mais um elemento gnóstico). Não era o reconhecimento como músico de jazz o que ele de fato queria. O que realmente dava sentido à sua vida e o que representava o inegável sucesso dele era seu trabalho como professor de música.

É o momento catártico do filme, prenunciado por uma menção ao “This is Water”, de David Foster Wallace. Mas, ainda que eu tivesse ido às lágrimas com esse desfecho do filme, não dá para não voltar à questão inicial deste texto. Por isso, novamente interrompo o filme, olho para o lado e consulto minha mulher que, entre um soluço e outro, encontra tempo para me lançar um olhar de fúria. "De novo?!", pergunta ela.

Como gosto de viver perigosamente, digo a ela que não consigo imaginar uma criança chegando a esse ponto do filme e se relacionando com uma questão tão madura. Afinal, crianças apenas sonham em se tornar bombeiros, astronautas e até lixeiros (imagine que delícia pegar rabeira no caminhão o dia todo!). O sucesso, para elas, é um conceito chato. Coisa de adulto.

Minha mulher respira fundo, pega discretamente o controle remoto e retoma o filme. Assistindo às cenas finais, já pensando que no dia seguinte vou trabalhar ao som de Thelonious Monk, imagino o que teria feito da minha vida se, aos 12 anos ou antes, um episódio de "Duck Tales" ou mesmo do "He-Man" tivesse ensinado àquela criança cheia de sonhos esdrúxulos que sucesso profissional e realização pessoal não são a mesma coisa.

É um filme

Durmo e, já no dia seguinte, começo a rascunhar mentalmente o texto que você tem em mãos. É quando sou interrompido, também mentalmente, pela onipresente voz que me repreende por textos assim, dizendo que “é um filme, cara”. A ênfase no advérbio de intensidade soa como giz novo sobre a lousa.

Obviamente não concordo com a ideia de que um filme, um livro ou uma música sejam apenas (só, somente, tão somente, meramente) um filme, livro ou música. Esse tipo de raciocínio serve apenas para justificar a mediocridade tanto da obra em questão quanto de quem a consome. A ideia de um entretenimento vazio me dá calafrios. porque não consigo me livrar de todas as coisas que absorvi na vida ao me deparar com um filme como “Soul”.

O argumento, dito assim em tom de desprezo anti-intelectual (um desprezo que revela insegurança, mas não me aprofundarei nisso para não cair no universo de “Divertidamente”), expressa ainda uma contradição no discurso daqueles que se esforçam para elevar animações, séries juvenis, música sertaneja, romances de banca e coisas do gênero ao patamar de arte discutível. Afinal, se as qualidades dessas coisas podem ser exaltadas em termos mais ou menos ilustrados, por que não também os defeitos?

E, só para não terminar o texto com um ponto de interrogação, escrevo este parágrafo adicional recomendando a todos que assistam a “Soul”. De preferência ao lado dos filhos. E depois me contem. Recomendo ainda que não interrompam tanto a mulher durante o filme. Sobretudo quando ela estiver chorando. Evita discussões - e galos na testa.

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