Ouça este conteúdo
Caro leitor,
Curioso. Estou aqui há horas – horas mesmo! – tentando escrever esta carta, vadiando por assuntos que vão do canibalismo no Haiti à pergunta irrespondível “Quem sou eu?”. E nada. Os parágrafos avançam um pouquinho e param. Apago tudo. Recomeço. Apago. E sempre acabo voltando à frase. Ou melhor, à Frase que, nesta semana, mudou a minha vida.
É uma frase bastante simples, lida no romance “A Madona de Cedro”, de Antônio Callado. Antes de mencioná-la, porém, tenho que explicar o contexto. A frase é “pensada” pelo padre Estêvão, um sacerdote barroquíssimo numa cidade idem de Minas Gerais. Depois de fazer considerações pouco elogiosas sobre si mesmo e sobre alguns outros personagens, padre Estêvão, por meio do narrador, conclui simplesmente: “Até nas pequenas coisas tanta gente o surpreendia, tanta gente era melhor do que ele”.
É assim que a literatura pode mudar a vida da gente. Não por meio de metáforas elaboradíssimas, citações eruditas ou críticas sociais cheias de indignação juvenil. Não! Não é nos dando socos na boca do estômago nem nos jogando na sarjeta. Não! A literatura muda a vida da gente nos dando acesso a reflexões simples feitas por uma gente inventada, e que por algum milagre (isso é importante!) tocam nosso coração mais do que se fosse um amigo falando.
Tanta gente é melhor do que eu. Do que você. Do que nós. Em tudo. Inclusive e sobretudo aqueles que vou chamar aqui, num arroubo retórico, de inimigos. Mas que são apenas desafetos. Uma gente que me causa espanto pela forma como tentam ser aceitos pelo mundo. Que, recorrendo à Parábola do Filho Pródigo, se deleitam com a lavagem que lhes dão seus muitos senhores. Também eu já me fartei dessa lavagem aí, mas gosto de pensar que estou voltando. Afinal...
Hoje eu já sei, ó mãe querida
Nas lições da vida eu aprendi
O que eu vim procurar aqui distante
Eu sempre tive tudo e tudo está aí*
Tanta gente é melhor do que eu para, sei lá, acreditar na política e nos políticos. Ou para assentar uma laje. Ou para ganhar dinheiro. Ou para trabalhar com determinação e disciplina. Ou para convencer os outros de sua pretensa genialidade. Ou para obedecer, mesmo que contrariado. Ou para aceitar o seu papel medíocre no grande teatro da vida. Tanta gente é melhor do que eu para brigar e se impor. Para se arriscar. E até para arcar com as as consequências dessa impetuosidade toda.
Além de me obrigar a me confrontar com todas as coisas nas quais sou no máximo esforçado e às vezes nem isso, a constatação do padre Estêvão serviu para me fazer procurar qualidades improváveis não só nos meus desafetos próximos, mas também nos Grandes Desafetos Que Não Conheço Pessoalmente. Tipo Lula & Alexandre de Moraes. Sim, porque também eles devem ser melhores do que eu e você em alguma coisa. Não sei no quê. Mas devem.
Grande abraço,
P.S.: Hoje não era para ter P.S. Mas, depois de reler esta minha carta, fiquei pensando aqui que alguém pode muito bem apontar a esquizofrenia de alguém que numa semana diz que não aguenta mais o Lula e na semana seguinte diz que o Lula deve ser melhor do que ele em alguma coisa. Nestes nossos tempos simplistas, de fato a contradição salta aos olhos. Mas aí está outra coisa que redescobri em “A Madona de Cedro”: sou barroco. Entalhado em pedra-sabão.