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TIGRINHO
Não se deixe enganar pelas aparências: esse simpático tigrinho aí está arruinando a vida de milhões.| Foto: Reprodução

“...me dei mal mais uma vez”. Assim que concluí a crônica de ontem, percebi que hoje teria de deixar a fantasia e o humor de lado para falar sério sobre o vício muito real e muito preocupante em jogos como o tal do Tigrinho e os sites de apostas. Cujas generosas verbas publicitárias acabam por, digamos, nublar o julgamento de muitos formadores de opinião quanto ao gigantesco problema econômico, social e principalmente moral dessa atividade. Eu disse problema? Minto. É uma tragédia.

Uma tragédia que escancara a realidade moralmente degradada em que vivemos. Mas antes de imbicar por esse caminho permita-me confessar que um dia, há não muito tempo, fui a favor da liberação total e irrestrita de todos os jogos de azar. Era a minha fase libertária. Entendo, pois, as bases materialistas desse argumento que põe a prosperidade econômica acima de quaisquer dilemas éticos e espirituais atrelados ao jogo.

Botafogo x Real Madrid

Essa mentalidade parte do princípio de que não somos responsáveis pelas decisões do próximo. Se meu vizinho quer perder a casa apostando no Tigrinho ou na vitória do Botafogo sobre o Real Madrid na final do Mundial de Clubes, o problema é dele. Mas será que é mesmo? Será que a ruína do vizinho não afetará em nada a minha vida e a vida da minha comunidade? Ou melhor: será que os tributos que incidirem sobre a ruína do meu vizinho compensarão todo o sofrimento causado pelo jogo?

Um sofrimento que, veja bem, jamais se restringirá apenas ao jogador. Afinal, raramente o jogador é um eremita ou coisa que o valha. É como no caso das drogas: o viciado não faz mal apenas a si mesmo ou ao Estado. Ele faz mal à família e à comunidade, já que deixa de servir para ser servido; de contribuir para receber, quando não parasitar. Sem falar que tanto o jogador compulsivo quanto o viciado em drogas fomentam a criminalidade, etc.

Ai, que preguiça!

Esse, porém, é apenas um aspecto do que já chamei aqui de tragédia – porque tragédia deveras é. Esse é apenas o aspecto econômico e social. O aspecto material, que cabe nas planilhas dos burocratas. Muito mais preocupante é o efeito moral, uma vez que a promessa de ganhos rápidos e fáceis de jogos como o Tigrinho e os sites de apostas raramente aparece dissociada das promessas de satisfação de outros vícios, como a pornografia e a preguiça.

A preguiça? Sim, a preguiça. Ela que muitos consideram o vício mais inofensivo e às vezes até bonitinho, quando não um objetivo de vida. Mas que é capaz de transformar o homem num escravo do dinheiro, de si mesmo e do mundo. O que nos traz a uma pergunta essencial quando o assunto é a chamada “fezinha”, seja ela no Tigrinho, na Mega Sena ou no resultado do maior clássico do futebol acriano, seja ele qual for: por que você quer ficar rico? E não só: por que você quer ficar rico rapidamente, sem esforço e sem os sacrifícios inerentes ao trabalho?

Dinheiro, dinheiro, dinheiro

É que, no degradado imaginário popular, um imaginário consolidado por décadas e décadas de produtos culturais que retratam o rico como um homem sem preocupações, o dinheiro aparece como a solução de todos os problemas. Não é. Está longe de ser. Você sabe disso. Por mais que a publicidade e a novela das oito insistam em tentar convencê-lo do contrário, transformando a riqueza material num ideal de vida a ser admirado, imitado e invejado.

Aí está uma explicação para a epidemia de dependência em jogos no Brasil de 2024: o apelo a uma necessidade irreal de dinheiro, muito dinheiro, dinheiro rápido, dinheiro fácil, mais dinheiro, dinheiro que vai resolver tudo, dinheiro que vai nos fazer felizes permanentemente e dinheiro que vem atrelado a uma sorte que, para muitos, é sinal de predileção divina.

A cenoura do burro

Essa é a proverbial cenoura que o Tigrinho, os sites de aposta e quetais colocam na frente do burro. Você (ou seu amigo ou parente ou vizinho) joga no Tigrinho ou aposta no Campeonato Brasileiro de Queimada (ou “caçador”, como dizemos os curitibanos) porque foi convencido de que merece todos os prazeres e privilégios do mundo, sem quaisquer dos sacrifícios. Porque, em querendo, o Universo conspira a seu favor, como já disse algum embusteiro.

Ainda vemos o trabalho como algo indigno. Como um castigo do qual nos cabe fugir. E, de algumas décadas para cá, passamos a ver a modéstia, aquela vida difícil, mas não miserável, aquela gratificação necessariamente adiada, aquela insegurança natural e que exige tanto da virtude da fortaleza como sinais de fraqueza e debilidade. Para piorar, o hedonismo e a ostentação, antes restritos à cafonice dos novos-ricos (o chique era ser podre de rico, mas com discrição), viraram objeto de desejo mimético. Deu no que deu.

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