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Nesses momentos em que a direita está em depressão, circula aos montes um texto atribuído ao falecido jornalista J. R. Guzzo, intitulado “Viver no Brasil é desperdiçar a vida”. É sempre um mesmo print, com marcações em amarelo. Meus cinco minutos como repórter investigativo, porém, não conseguiram provar a autenticidade do texto, supostamente publicado na revista Veja. Quero crer que não seja do Guzzo mesmo.
Porque, se for, Guzzo estava completamente errado em seu messianismo pessimista. Não!, direi quantas vezes e quantos pontos de exclamação forem necessários. Não! Viver no Brasil NÃO É desperdiçar a vida e desconfie de quem lhe disser o contrário, porque algo me diz que essa pessoa tem ou uma visão materialista demais da vida ou está lucrando (financeira, política ou até emocionalmente) com seu desespero.
Não
Aliás, a vida é uma bênção e merece ser vivida em qualquer lugar do mundo. Por pior que ele seja. Até na Coreia do Norte ou no Sudão. Na China comunista? Também, ué. Na Venezuela idem. Em Osasco... talvez. Brincadeira. Até em Osasco ou Belém ou Maricá ou Curitiba a vida não é desperdício nenhum. Porque essa coisa de sentir que a vida está sendo desperdiçada só porque o contrato social não foi respeitado é uma balela. Uma falácia. E uma balela & falácia perigosas.
Ora, se a vida ainda valia a pena ser vivida nos campos de concentração e nos gulags, onde havia gente rezando, amando, rindo e resistindo com dignidade, mesmo diante do Pior (com “p” maiúsculo), quem somos nós para dizer que não vale a pena viver no Brasil de 2025? Por mais difícil que seja e por mais que o autor do texto atribuído ao Guzzo tenha razão em algumas frases amplas demais, como “o brasileiro não é respeitado como cidadão”. Tá, não é mesmo. E daí? Por acaso o sentido da vida se resume a “ser respeitado como cidadão”? Não, claro que não e quantas vezes mais forem necessárias: não.
Fatalismo e materialismo
É compreensível, o desânimo de quem compartilha o meme. E entendo que ele seja compartilhado porque queremos sentir que não somos os únicos e tal. Mas o que me incomoda nesse texto, e na circulação acrítica dele, é o tom fatalista e principalmente a ideia de que o ser humano depende do Estado. Olha só este trecho: “As chances de progresso pessoal estão cada vez mais limitadas”. Repare que o autor, quem quer que seja, não diz que não há oportunidades de evoluir; diz que as oportunidades estão “cada vez mais limitadas”. Mas elas existem. Sempre. Ou seja, um mimimi preguiçoso que o Guzzo jamais escreveria. (Acho e espero).
A partir daí, é curioso como o recorte adquire um tom essencialmente materialista. O autor reclama que o Estado não cumpre o seu papel. Que os serviços não são prestados e que nós, contribuintes, somos roubados. E não estou negando nada disso, mas seria de uma estupidez e infantilidade sem tamanho dizer que, por causa da incompetência do Estado ou da corrupção, viver no Brasil é um desperdício. Claro. Que. Não. É. Quer ver só? Continua me lendo:
No Brasil ou na Suíça
Porque há outros aspectos da vida que o autor do texto ignora e quem o marcou em amarelo ignora ainda mais. As relações familiares e de amizade, por exemplo. A cultura – entendida não como a criação de obras artísticas, e sim como um conjunto de valores, crenças, costumes, tradições, etc. Tem também a natureza (sim, a natureza!) e as próprias dificuldades a serem superadas. Afinal, uma vida sem dificuldades e sacrifícios é que seria um desperdício.
Aqui, aproveitando a proximidade do Natal, talvez valha a pena nos determos nesse aspecto. Novamente compreendo a tristeza de se sentir cercado por escroques, a revolta com o roubo institucionalizado e até o medo, tanto da violência urbana quanto do futuro catastrófico. Mas de que serve a vida se não for para superar esses desafios maiores e tantos outros menores que não caberiam neste texto? A vida é mesmo difícil. Há inimigos a serem derrotados e lutas a serem travadas. Mas ninguém jamais disse que seria fácil. Seja no Brasil ou na Suíça.
Adão que o diga
Para dar credibilidade ao meme, o autor habilmente recorta o texto. Que termina com a frase “Aqui o homem mau dorme bem”. Discordo. Nem aqui nem em lugar nenhum o homem mau dorme bem. Pode até parecer que durma – e, nisso, o Rivotril sempre ajuda. Mas acredite: aqui e alhures o homem mau sempre dormirá atormentado pela consciência da própria torpeza e da eternidade infernal que o aguarda. No mais, e mesmo que dormisse bem o homem mau, do que está querendo nos convencer o autor? De que a maldade compensa ou passa impune, e por isso deveríamos ser maus também?
Por isso é que, sem querer parecer professoral, mas correndo o risco de parecer, encerro este texto cuja autoria é comprovadamente minha fazendo um alerta: esteja atento, leitor. Porque, nessas horas, quando tudo parece envolto em trevas, sempre surgem espertinhos tentando se aproveitar de você. De mim, de nós. Não se engane. Quem vende esse tipo de descrença ampla, geral e irrestrita é porque está querendo que você comece a acreditar nele e em suas promessas de paraíso. É o truque mais velho do mundo. Adão que o diga.




