Nunca tive um cachorro. Quer dizer: quando a gente morava em Salvador, na casa da Pituba – eu devia ter uns nove anos – tivemos por algumas semanas um cãozinho cujo nome esqueci. Ainda existem duas fotos antigas dele, analógicas e fora de foco. É possível vê-lo no colo de um dos meus irmãos e na grama do farol da Barra, em um domingo. Há também um filme super oito que documenta nossa tentativa de fazer uma corrida entre ele e uma galinha, nosso outro animal de estimação. O nome dela era Chumbica. Um dia, virou almoço. Não reclamamos.
O destino do cãozinho foi outro. Um dia cheguei em casa e não o encontrei. Minha mãe disse que ele tentara atravessar a rua, rumo ao matagal que havia do outro lado, e fora atropelado. Foi a primeira vez que senti tristeza profunda. Anos depois, quando eu já era adulto, minha mãe me revelaria que, na verdade, ela tinha doado o cachorro. Eram quatro filhos para criar e ela não conseguia lidar com mais aquela responsabilidade. Na hora senti uma pontada daquela dor antiga, depois passou.
Descobri que cachorros falam. Eu tenho evidências. O Cocada tem um vocabulário de latidos, grunhidos e gemidos que expressa claramente o que quer e o que sente
Cresci e a vida me levou para outras praias e interesses. Nunca senti afeto especial por cães. Tinha dificuldade de entender o que os donos de cachorros – ou tutores, como se diz hoje em dia – sentem por seus animais. Certa vez, quando fiz parte de uma associação de moradores, descobri logo que o grupo mais unido e assertivo era formado pelos donos de pets. Quer dizer: tutores. Nas reuniões da associação era mais fácil sugerir uma medida que prejudicasse as crianças do bairro do que algo que pudesse afetar os cães. Confesso que nunca entendi isso. Aí chegou o Cocada.
Quando nos casamos, minha mulher nem queria falar de animais de estimação. Nossos filhos chegaram e a cabeça dela continuou a mesma. Ela é perfeccionista. Gosta da casa arrumada, tem prazer em ver tudo em seu lugar e em criar um ambiente estético e harmônico.
A pandemia mudou tudo. Vivemos um episódio que demonstra a clarividência que só mulheres conseguem ter. Não estávamos ainda na terceira semana do fique em casa quando ela me mostrou seu celular. Olha, ela disse, esse aqui é o Cocada. Eu olhei: era o vídeo de um cachorrinho, uma bolinha de pelo branco que parecia de brinquedo, andando para lá e pra cá. Semana que vem nós vamos buscá-lo, ela me comunicou.
Como assim? Vamos ter um cachorro?
Vamos.
(nota do autor para os leigos no assunto: é dessa forma que funciona um casamento harmonioso)
Assim, desde abril de 2020, Cocada tem sido meu guia – ou seria melhor dizer meu tutor? – para o maravilhoso – e até então desconhecido para mim – mundo dos cães.
Com ele aprendi que cachorro se espreguiça. A primeira coisa que ele faz quando acorda é esticar as duas patas da frente, como se fizesse um alongamento antes de uma corrida. Quando eu ia saber que cachorro fazia isso?
Descobri que cachorros podem ter vários nomes. O Cocada também é chamado, dependendo do momento, de Coco, Coquinho, Picolé, Picolino, Branco Velho ou – com menos frequência – sua peste.
Descobri que cachorros falam. Eu tenho evidências. O Cocada tem um vocabulário de latidos, grunhidos e gemidos que expressa claramente o que quer e o que sente. Ele tem um latido específico para reagir à campainha da porta e ao interfone. Outro latido só é usado para pedir colo – e todo mundo que chega em casa tem que pegá-lo nos braços ou ele não sossega. Há um latido próprio para quando quer comer: ele late, espera, late, espera. E ele tem uma forma peculiar de implorar por alguma coisa: começa com um gemido baixinho que vai aumentando até virar um latido baixo, que depois aumenta aos poucos até virar um latido alto, insuportável.
Cocada não tolera briga, nem gesto ou entonação de voz que possa sugerir desentendimento
A rosnada significa largue o celular e preste atenção em mim. Cocada também tem um latido especial para quando alguém, por qualquer motivo, sai de casa. Eu não sei se todos os cães são assim, mas Cocada adora quando alguém – qualquer um – chega em casa e se revolta quando a pessoa vai embora.
Minha filha vai para a escola ao meio-dia. É a mesma hora em que um vizinho toca uma música religiosa. Cocada já aprendeu que a música significa que a mamãe – a tutora – dele está saindo de casa, e começa a latir como um doido. De alguma maneira, ele agora pressente que a hora chegou antes mesmo de a música tocar, e já começa a ficar agressivo e a dar latidos de advertência.
Ele se apaixona aleatoriamente por visitas. Um de meus amigos conquistou tanto o coração do Cocada, sem ter feito nada de especial, que quando ele vai lá em casa o Cocada se emociona a ponto de fazer xixi.
Cocada não tolera briga, nem gesto ou entonação de voz que possa sugerir desentendimento. Se, por alguma razão, subimos o tom da fala, mesmo que seja por alegria ou espanto, Cocada intervém latindo alto. Durante muito tempo não podíamos nem chegar muito perto uns dos outros; eu não podia abraçar a minha mulher ou beijar minha filha que o Cocada entrava no meio rosnando e latindo. Dizíamos que ele era o fiscal da casa. Essa fase já passou.
Não sei por que razão, logo depois da chegada dele, minha mulher comprou uns potes pequenos de plástico para colocar a ração do Cocada. Tentamos algumas vezes colocar a ração em um prato no chão, mas ele não comia. Como ele era pequeno, a minha mulher pegava os potinhos e dava comida na boca do Cocada. E é assim que ele come até hoje.
Os potes de plástico com ração ficam espalhados por toda a casa. Quando está com fome, Cocada pega um potinho e leva-o até a pessoa que ele selecionou para alimentá-lo. É preciso destampar o potinho, colocar a comida na mão e oferecer a ele. Antes de começar a comer, ele lambe a mão como agradecimento.
Não sei como pude viver 57 anos sem um cão.
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