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Roberto Motta

Roberto Motta

O casaco vermelho

(Foto: Mircea Iancu/Pixabay)

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Quem sabe as razões pelas quais lembramos algumas coisas e esquecemos outras? Quase tudo que vivemos acaba se apagando da memória. Por que alguns eventos, aparentemente triviais, nunca são esquecidos?

Era um sábado de outono quando o motorista do carro cinza parou no sinal de trânsito da Lagoa Rodrigo de Freitas, bem em frente à Sociedade Hípica. No banco de trás estava a filha muito amada, que avançava pela adolescência sob a proteção e os cuidados do pai. Seguiam, pai e filha, rumo a uma festa de aniversário.

Parado no sinal vermelho ele viu, ao longe, um barco que deslizava na lagoa, emoldurado por duas acácias. Ele então se lembrou do mendigo.

Onde ficam guardadas essas memórias? Em que canto escondido elas repousam, para um dia retornar, sem aviso?

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Acontecera há 40 anos. Era 1980 e ele tinha 18 anos. Tinha também toda a inocência, vitalidade e alegria do mundo. Todas as portas se abriam.

Ele havia sido aprovado nos vestibulares mais difíceis para as melhores universidades. Assim que tirou a carteira de motorista o pai compartilhou com ele um carro novo – um Volkswagen Passat a álcool de primeira geração. Ele ainda se lembrava do cheiro adocicado do escapamento. No Passat ele dirigia até a casa da sua primeira namorada. Aquela palavra o fez sorrir: namorada.

Era um trajeto que começava em Botafogo, onde ele morava, passava pela Lagoa e ia até o início de Ipanema. No meio do caminho estava aquele sinal – o mesmo sinal onde, naquele dia, 40 anos depois, ele estava parado, sua filha no banco de trás do carro.

Quarenta anos antes: o vigor interminável da juventude, a satisfação pelas conquistas acadêmicas e o mistério do primeiro amor produziram nele uma alegria de viver que ele experimentaria de novo apenas em poucas ocasiões, ainda no futuro: quando foi contratado para trabalhar em um banco nos Estados Unidos, no dia do seu casamento e nos dias em que nasceram seu menino e sua menina. Mas em 1980 tudo aquilo ainda estava por vir.

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Em 1980 sua rotina era frequentar as aulas na faculdade e, à noite, dirigindo o Passat, visitar a namorada.

A família jantava por volta das 7 da noite. Depois do jantar ele pegava as chaves do carro, esquentava o motor do Passat e tomava o rumo da namorada. No caminho, o sinal da lagoa. No sinal, um mendigo pedindo esmola.

O mendigo tinha um defeito de nascença que deformara sua coluna vertebral. Ele caminhava com dificuldade entre os carros, a mão estendida.

Ninguém é verdadeiramente jovem se não se revolta com as injustiças e assimetrias do mundo. É fácil perceber que, enquanto alguns desfrutam de segurança e amor, outros parecem condenados a uma vida sem esperança. Era aquilo que passava na cabeça dele todas as vezes em que parava no sinal e encontrava o mendigo.

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Um dia, antes de se levantar da mesa, ele abriu um pão francês ao meio, passou manteiga e colocou um dos bifes que sobraram do jantar. Juntou alguns guardanapos e colocou tudo, com cuidado, em um saco plástico.

Quando parou no sinal da lagoa ele entregou o sanduíche ao mendigo. Pelo espelho retrovisor, enquanto partia rumo à namorada, ele conseguiu ver o mendigo sorrindo e agradecendo com as mãos.

Passou a fazer isso todos os dias. Algumas vezes o mendigo não estava lá. Muitas vezes estava, o reconhecia e agradecia sorrindo.

Então chegou o inverno. Era necessário deixar o Passat esquentando quase meia hora antes de sair. Chovia e fazia frio.

Em um daqueles dias, além do sanduíche, ele levou outra coisa: um casaco vermelho, estofado. Era um casaco bonito.

Porque nenhum homem que tem o vigor dos 18 anos, o amor de uma jovem mulher e a segurança de uma família pode assistir impassível enquanto outro ser humano passa fome e frio.

“Não se eu puder fazer alguma coisa“ ele pensou.

Por isso, naquele dia de inverno de 1980, junto com um sanduíche de carne assada com queijo e maionese, o mendigo, cujo nome ele nunca soube, cujo nome ele nunca teve a coragem de perguntar, recebeu outra sacola. Na segunda sacola estava o casaco vermelho.

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Por que nos lembramos de algumas coisas e esquecemos outras? Por que, nos milhares de dias de nossas vidas, algumas memórias ficam gravadas, inapagáveis, no meio da neblina da existência?

Alguns dias depois, quando ele parou no sinal, o mendigo vestia o casaco vermelho.

Ele nunca esqueceria a imagem, vista pelo retrovisor do carro, do homem curvado sob o peso do destino, lutando pela sobrevivência, usando o casaco que tinha sido seu.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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