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Samia Marsili

Samia Marsili

Morte

Exercício de alma

(Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Fecham as cortinas, porque mesmo a pouca luz pode ferir aqueles olhos já tão abatidos, já tão fundos, em redor dos quais uma faixa escura marca o rosto muito pálido; os lábios ressequidos, entreabertos, pelos quais exala o último hálito cansado de vida; a mão fraca, acolhida entre duas amorosas mãos sadias, relaxa e deixa cair-se, para ser então pousada sobre o peito daquele que já não está mais entre nós. Para onde foi? Ou é um dia comum, o sol está dourando o azul do céu ainda pertinho do horizonte, há muito trabalho a fazer, e depois não esquecer de levar tal coisa para casa, e num susto querem o carro – pode levar! –, e três estouros no ar marcam a queda de um homem. Onde está ele? Como um girassol, olhou para cima e sorriu? Ou é um passeio breve antes do almoço, o cavalo conhecido de sempre, e, como no famoso episódio bíblico, a grande luz e a grande voz fazem cair um homem velho para elevar um homem novo. Mas onde, que não vemos? O que veem, no instante derradeiro, os olhos que, um instante depois, perderão o brilho? E esse brilho, a sua vida, para onde vai? Para onde vão os nossos mortos, o que tem do outro lado? A morte é um mistério tremendo, que nos transcende e abarca, e que, sendo inescapavelmente o ponto final de nossa história nesta Terra, a de todos e cada um de nós, não pode ser ignorado.

É tamanho esse mistério, que com ele não se pode improvisar. Em nenhum aspecto. Não se improvisa uma morte serena, um último gesto, as últimas palavras. Nem se improvisa a serenidade com relação à morte dos outros, dos familiares e amigos, sejam as mais naturais, sejam as repentinas, trágicas por algum motivo, e que mais nos vão entristecer. Também não se improvisa a maneira com a qual vamos transmitir serenidade aos nossos filhos, com a qual vamos consolá-los, ajudá-los a viver e a superar um luto. Digo que não se improvisa porque, se não tivermos em nós uma assimilação bastante sólida desse fato, da concretude absoluta de nossa condição mortal, a sua aparição ao nosso redor vai nos pegar de surpresa e vai nos desestabilizar, exatamente porque vai abalar a fragilidade de um mundo imaginário em que vivíamos, no qual ninguém morre. Ignorando esse fato, vivíamos, sem querer, numa ilusão, que então é radicalmente desmanchada. E, nesse momento, não teremos outra coisa a oferecer aos nossos filhos a não ser a confusão e o desespero.

Já na década de 1930, num belo ensaio chamado O narrador, Walter Benjamin fazia notar como, no decorrer dos últimos séculos, a ideia e a presença mesma da morte vinham desaparecendo do horizonte cultural, vinham perdendo sua força de evocação na consciência coletiva. Antigamente, em toda casa havia a memória de que “naquele quarto, Fulano morreu”, “foi naquele quarto que Fulano disse estas palavras, e então morreu”, assim como se recordava que, nesses mesmos quartos, Fulano e Sicrano tinham nascido. Nascia-se e morria-se em casa, onde habitava a família, e portanto aos olhos e aos cuidados de todas as gerações. E, sem diminuir em nada o valor e a bênção que são o avanço da medicina e dos hospitais, é preciso dizer que, com o tempo, a morte passou a ser afastada, isolada, quase escondida de nós, e até mesmo da própria pessoa em questão, que não está presente ao momento de sua própria morte, pois está entubada, narcotizada, inconsciente. Inclusive falar de morte em algumas circunstâncias pode hoje ser desconfortável, por parecer deselegante, feio, um tabu, como se estivéssemos sendo pessimistas, pensando em coisas ruins quando deveríamos sempre sorrir e ser alegres – bata na boca e na madeira, três vezes. Bem, até que a morte bate três vezes à porta, e irrompe como um absurdo inesperado.

É bom que cada pai dose a forma com que a notícia de uma morte iminente ou de uma morte já sucedida será dada aos filhos, mas sem nunca lhes esconder a verdade, sem mentir, sem fugir, sem deixar para a última hora

Nós devemos assimilar a concretude da morte, bem como de quaisquer outros fatos da realidade, para vivermos bem. Sempre que deixamos de fora do “nosso mundo”, do mundo que nós pensamos habitar em nossa imaginação, algum fato relevante da realidade, a sua aparição e o nosso inevitável contato com ele vão simplesmente nos desiludir, nos pegar desprevenidos, nos confundir e machucar, fazer “nosso mundo cair”. Ora, o fato da mortalidade, a nossa e a daqueles que amamos, é talvez o mais fundamental deles. Porque o mistério da morte é inseparável do mistério da vida, que é inseparável do mistério do amor. É em face da sua finitude que a nossa vida ganha sentido, que as nossas ações adquirem a sua verdadeira proporção, que sentimos o peso e a importância de cumprirmos o nosso dever e de sermos bons. Assim tomamos consciência do valor inestimável de cada um dos nossos dias. Faz-se qualquer coisa melhor quando se tem em vista que esta vida é uma trajetória sendo cumprida até um fim, ao passo que viver como se nunca fôssemos morrer é leviano, é um desperdício, uma alienação. Amamos mais e melhor quando temos em conta a nossa mortalidade, como gostava de dizer Nelson Rodrigues: “Não há amor se, ao mesmo tempo, falta o sentimento da morte. É preciso que, olhando o ser amado, cada qual pense: ‘Um de nós morrerá primeiro’. Amaremos melhor se pensarmos na morte. Os que não se lembram da morte têm a alma mais árida do que três desertos”.

A maneira como nos comportamos diante da morte, como vivemos a dor e o sofrimento, como encaramos uma perda, diz muito mais sobre nós do que o que pensamos a respeito, do que as ideias que temos, mas que ainda não se assentaram, que não decantaram como crenças vitais. E, quando a morte de alguém acontecer em nossa família, do mesmo modo essa nossa atitude, esse nosso comportamento, dirá e ensinará muito mais aos nossos filhos do que tudo o que pudermos lhes dizer – muito embora as palavras certas, e as imagens certas para explicar as coisas, sejam fundamentais. É que elas brotarão da nossa atitude, que por sua vez brotará da nossa crença vital, já bem assentada pela meditação do fato tremendo. Mas como, para além disso, ensinar-lhes essa verdade da vida? Como transmitir, como falar da morte com nossos filhos e ajudá-los a lidar com ela?

Assim como em tudo o mais na educação, eu afirmo que os pais devem ser, para seus filhos, uns intérpretes da realidade. Os fatos brutos, a vida que lhes acontece simplesmente, serve a eles de muito pouco; as crianças ainda não têm um arsenal de conceitos, valores e proporções que lhes permita interpretar e correlacionar os fatos de modo a apreender o seu sentido, e realmente compreender as coisas. Elas precisam que alguém lhes mostre como fazer isso, e que o mostre fazendo-o para elas. Sendo assim, é bom que cada pai dose a forma com que a notícia de uma morte iminente ou de uma morte já sucedida será dada aos filhos, mas sem nunca lhes esconder a verdade, sem mentir, sem fugir, sem deixar para a última hora, porque isso não seria interpretar a realidade, mas escamoteá-la. Por exemplo, privar as crianças de acompanhar o processo de uma morte e de sua previsibilidade. Já vi casos em que não se explicava para as crianças que o vovô ou a vovó doente estava declinando, de tal modo que, quando veio a falecer, o seu sumiço foi muito mais que repentino, foi traumático, e não tinha de ser. Já vi casos em que a mãe escondeu dos filhos que o pai estava no hospital em estado grave, dizendo que estava viajando, e, do mesmo modo, quando ele não voltou mais de viagem, esse sumiço foi extremamente perturbador. Afinal, como contar e explicar tudo de uma vez? Como desfazer essas bem-intencionadas mentiras?

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Isso não quer dizer, de modo algum, que se deva passar um relatório adulto completo para as crianças, e transferir para elas as nossas preocupações, angústias e medos. Isso também não seria interpretar, seria apenas despejar mais informações sem sentido. Trata-se de, levando em conta a relação que a criança tem com o parente, a sua idade e a sua capacidade de entendimento, introduzir a ela o que está se passando, deixá-la participar, ao seu modo, da vida que está se desenrolando, do mesmo modo como a deixamos participar dos nascimentos, do início da vida. Já vi casos em que foi permitido às crianças acompanhar a doença de um parente e viver a incerteza sobre se ele melhoraria ou não, e que isso foi extremamente benéfico para a maneira como lidaram com a sua perda, semanas depois. Nesses casos, saber, por exemplo, que a pessoa está sendo assistida por médicos, que já recebeu a visita do sacerdote ou do pastor, que diz estar com saudades e que os ama, e mesmo permitir-lhes fazer uma visita, tudo isso pode dar às crianças segurança e tranquilidade.

Houve também o caso de uma amiga cuja bebezinha veio a falecer, e em cuja morte os pais permitiram que os outros dois filhos mais velhos, de cerca de 6 e 8 anos, participassem juntamente com eles. Desde o início, eles rezaram muitas vezes com seus pais, suplicando a Deus pela vida da irmã. Quando ela faleceu, eles puderam estar ali e se despedir dela, e foi-lhes permitido inclusive ajudar a trocar as roupinhas dela. Embora tivessem pedido a Deus por sua vida, embora seus pais estivessem ali o tempo todo velando por ela e os médicos tivessem feito de tudo para que ela melhorasse... a morte é algo que acontece aos seres humanos, e aconteceu àquela irmãzinha, e as crianças, por intermédio de seus pais, puderam viver essa experiência. Vendo seus pais firmes e serenos, embora tristes e banhados em lágrimas, dando graças a Deus pela vida dela, puderam sentir que a morte não é uma ausência ou um descaso de Deus, mas ao contrário, que há uma Providência que regula e cuida da vida de todos, os pais deles inclusos. Eles não foram privados da verdade, nem a tiveram substituída por uma historinha mais leve: eles tiveram a realidade interpretada por seus pais.

E isso não significa, vale a pena ressaltar, que aceitar a verdade da morte seja sinônimo de não chorar, de não sentir tristeza, de não sofrer, de não sentir a dor da perda e da ausência, de não padecer, às vezes, a própria maldade do mundo e dos homens, de não gemer sob algum arrependimento. Não, porque tudo isso também existe, e faz parte, ao seu modo, da própria realidade da morte humana. O próprio Cristo, quando deparou-se com a morte de seu amado amigo, e com a dor de sua amiga, também se pôs a chorar (Jo 11, 35). Se o Mestre não se privou de chorar diante de nós, na página do evangelho, nós, pais, também não precisamos nos privar de chorar e de expressar o nosso pesar na frente dos nossos filhos, pois essa nossa expressão será, queiramos ou não, um modo de lhes ensinar, pelo exemplo, o que sentir e o que pensar; será a formação de um repertório para eles. Como já dissemos acima, é o nosso comportamento o que realmente dirá a eles algo sobre a morte, e se vivermos a dor de maneira serena e honrada, é dentro dessas proporções que eles interpretarão o seu próprio sentimento, conforme a sua idade.

É preciso meditar, é preciso meditar sempre, até que não se esqueça mais de que a vida, de que toda a nossa a vida e tudo o que ela contém, é feita para acabar. Mas por que será que nos é tão difícil assimilar esse fato?

E, com efeito, há ao menos quatro faixas etárias com relação à compreensão e à assimilação do fato da morte. É relevante termos isso em mente quando formos comunicar esses eventos aos nossos filhos, e mediar a sua participação neles. São as seguintes: Do zero aos 3 anos, a criança ainda não é capaz de diferenciar de fato algo vivo de algo morto, essa ideia ainda lhe escapa; dos 3 aos 6, ela passa a ser capaz de fazer essa diferenciação, mas ainda sem captar o caráter definitivo dessa condição (como se fosse possível brincar de “morto-vivo”); dos 6 aos 9 anos, a compreensão se esclarece ainda mais e liga-se às experiências concretas que ela teve, no entanto continua sendo difícil assimilar o caráter irreversível daquela partida, o “para sempre” (já presenciei casos em que um filho compreendera que o pai havia morrido, mas, na missa de sétimo dia, questionou a mãe se já estava na hora de ele voltar. Às vezes coisas parecidas nos acontecem em sonho, não é mesmo?); e enfim, dos 9 aos 12, a criança é capaz de compreender que tudo aquilo que vive pode morrer, e portanto que todos morrem, e pode, então, afligir-se com a possibilidade de que a mãe ou o pai venham a morrer. E nós? – agora sejamos francos: de quantos anos ainda precisaremos para assimilar que de fato vamos morrer, e que esta vida terá fim?

Antigamente, os monges e eremitas mantinham consigo o crânio de um irmão falecido, para não se esquecer do próprio futuro. “Lembra-te, homem, de que és pó, e em pó te hás de tornar” (Gn 3, 19). Ou então com anéis, pulseiras ou pequenas moedas a serem levadas no bolso, sempre se cultivou, em várias culturas, o “memento mori”, a lembrança constante da morte, que nos faria viver melhor o presente, colher cada dia, carpere diem. Mas não como quem, lembrando de que vai morrer, pensasse que nada tem sentido, e que portanto o melhor é fazer o que der na veneta, e não se preocupar com mais nada nem ninguém. “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (1Cor 15, 32). Isto faz quem lembrou da morte, mas não meditou o suficiente em seu mistério, não meditou o bastante sobre esses mistérios que são chamados, tradicionalmente, de “novíssimos”, embora sejam os mais velhos de todos. Isso equivale a dizer que a hora da morte não é uma rasura sobre uma vida mal vivida, que merece ser esquecida; não, a hora da morte é o ponto final de uma biografia, é o momento em que o coração daquele que viveu aquela vida será pesado, em que essa vida será julgada aos olhos do absoluto, sem apelação. É a hora. A sua hora. Você estará, como dizia Léon Bloy, “sozinho na antecâmara de Deus. Quando chegar a vez de eu me apresentar, onde estarão aqueles que amei e que me amaram? Sei muito bem que os que sabem rezar rezarão por mim de todo o coração, mas como estarão longe então e que solidão avassaladora diante de meu Juiz!”

Os mistérios “novíssimos” são, para além da morte, o juízo, o Inferno, o Paraíso, o nosso destino eterno. A meditação sobre eles ajuda a expor cruamente, para nós próprios, o que estamos fazendo de nossa vida e o que queremos fazer dali em diante, mas, sobretudo, quanto precisamos de misericórdia, e quanto ainda precisamos confiar, confiar como filhinhos, na divina Providência. Há quem morra por acidente, por acaso, por um descuido, uma cochilada de Deus? Não, não de fato, pois, como diz o salmo (121), “o Senhor não dorme nem cochila”. Ou então, como diz o poema de Olavo Bilac que gosto de repetir com meus filhos: “Que cada um cumpra a sorte / das mãos de Deus recebida: / pois só pode dar a morte / Aquele que dá a vida”.

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É preciso meditar, é preciso meditar sempre, até que não se esqueça mais de que a vida, de que toda a nossa a vida e tudo o que ela contém, é feita para acabar. Mas por que será que nos é tão difícil assimilar esse fato? Se contamos e convivemos com tantas coisas concretas e inevitáveis, se o ser humano se adapta a tanta coisa, por que justamente isto, por que justamente o termo da vida nos é tão adverso assimilar? É porque algo em nós o nega, algo em nós parece insistir em afirmar que não vamos morrer. Não, não aceito, não fomos feitos para morrer. Isso não condiz com os nossos pensamentos, com os nossos sentimentos, com o que há dentro de nós e com tudo aquilo que podemos fazer, com a matemática, a música, a arte, com a grandeza de um coração que ama e a profundidade de uma inteligência que compreende: nós temos uma alma imortal.

A morte parece ser uma disfunção, uma incômoda deformidade da nossa natureza – e de fato, segundo a tradição judaico-cristã, a morte é fruto do pecado original, e não parte do plano original. Contudo, está feito: ela se interpôs entre nós e a nossa felicidade, e por ela teremos de passar. Não temos saída a não ser suportar essa mazela e nos exercitar para enfrentá-la, para estarmos prontos quando ela vier, sorrateira, indulgente ou violenta, e, como diz o poema de Cecília, “Tristes ainda seremos por muito tempo, / embora de uma nobre tristeza, / nós, os que o sol e a lua / todos os dias encontram, / no espelho do silêncio refletidos, / neste longo exercício de alma”. Um longo exercício de alma, que terá o seu fim e a sua consolação. Pois aquele mesmo Cristo, que divinizou nossas lágrimas ao chorar por Lázaro, Ele em seguida o ressuscitou dos mortos, anunciou que era Ele próprio a vida, entregou-se à pior morte para dela triunfar: ressuscitou prometendo que, no último dia do mundo, faria o mesmo com todos que o quiséssemos. Ó morte, tu que eras tão forte, onde foi parar o teu poder? A palavra final não é mais a morte, mas novamente vida; não é mais a tristeza e a dor, mas a esperança.

Quando vier o último dia e formos todos levantados dos túmulos da Terra, esteja sobre nós e nossos mortos a marca indelével da sua graça.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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