“Vai doer mais em mim do que em você!” – é a marca registrada da boa e velha palmada, das épicas chineladas da mãe brasileira, da surra de cinta dada pelo pai ao fim de um dia de traquinagens. A nossa geração ainda tem memórias comuns de situações como essas, e muitas pessoas dizem, com segurança, e até com um pouco de emoção, que terem apanhado dos pais as salvou, que isso as educou de verdade, forjou o seu caráter, e que, não fosse isso, provavelmente teriam ido por um mau caminho, se tornado pessoas más e se perdido. Entretanto, quando são questionadas sobre a validade dessa prática, essas mesmas pessoas geralmente respondem que, na verdade, esta não é mais a melhor maneira de proceder na educação dos filhos, e que existem outros caminhos. Os castigos físicos e outras punições mais severas seriam formas antiquadas de educação, pois os tempos mudaram, não são mais como antigamente – e a “lei da palmada” vem como um grande símbolo para coroar essa mudança.
Cria-se uma situação complicada: a verdade, pura e simples, é que a maioria dos pais não tem clareza sobre este ser ou não um método eficaz de educação, pois não compreende o seu sentido – se é que há algum – dentro de um cenário mais amplo, num plano educativo coerente que eles tenham concebido e pelo qual tenham conscientemente optado. Então, como pensam ao mesmo tempo que foi algo benéfico para si mesmos, e que pode ser benéfico para seus filhos também, mas que é um uso obsoleto, evitável, praticam-no por inércia, confusamente, por falta de opção, por não terem outra referência no repertório – e isso gera graves desconfortos e desencontros. Sentem remorsos, pensam que poderiam ter agido de outra maneira, temem que isso talvez os transforme em pessoas agressivas, ou que lhes cause traumas... Parece-lhes, enfim, que talvez estejam perdendo o controle sobre a educação deles, e são abatidos por um sentimento de fracasso e frustração.
Para além dessas palmadas aleatórias, que não se sabe ao certo se devem ou não ser dadas, se educam ou não, que os pais dão apenas porque assim foi feito com eles, existem umas situações mais graves, em que esses castigos vêm, inteiramente, por impulso, como fruto de um destempero: os pais batem porque perderam a paciência. Geralmente isso tem como retaguarda todo um ambiente irritadiço, de uma casa inteira que não funciona bem, que não tem uma rotina nem hábitos estabelecidos.
Educar na base da dinâmica castigo-recompensa não convém a seres humanos. Na verdade, nem cai bem, nesse caso, a palavra “educar”, pois trata-se mais bem de um treinar, de um condicionar, de um adestrar
Uma casa em que há uma criança que chora para tomar banho, para se vestir, para comer, que não come tudo, que dá escândalos na hora de dormir e não dorme na hora em que deveria, que dorme na cama dos pais... Ou uma criança que está sempre desafiando os pais, gritando, que não faz nada do que lhe é mandado fazer... É de fato insuportável lidar sempre com uma criança assim, e isso faz todos ficarem à flor da pele. Tanto a mãe, esteja ela sempre em casa com as crianças ou quando chega do trabalho, como o pai, que ficou fora o dia inteiro e chega em casa cansado, com fome, talvez com sono, e gostaria de ter em casa o descanso e a paz que não tem lá fora – e o que encontra é uma criança respondona, rebelde e indisciplinada. Esse ambiente familiar é todo ele eletrizado, tenso, irritadiço, e estar com a família, em vez de ser algo gostoso e desejável, vira um tormento a se evitar. É o cenário perfeito, o “caldo de cultura” para que um dos pais tente aliviar a situação batendo na criança. Como não concordam de fato com essa prática, a mãe, ao ver o pai batendo no filho, sente um grande remorso, e o repreende; ou, vice-versa, ao ver a mãe dando uma palmada no filho, o pai a repreende, pois ela está alterada, perdeu o controle. Começam ambos a brigar entre si, um a culpar o outro pela deseducação do filho, e a criança, no centro do picadeiro desse circo que se montou, só fica mais e mais confusa, mais e mais desorientada.
É uma pena que tantos pais usem esse recurso, não porque pensaram a respeito e concordam com ele, mas somente reproduzindo irrefletidamente a educação que receberam, e uma pena maior ainda que algumas famílias, cuja vida está desordenada, tenha episódios de agressividade como um mero sintoma da crise. Seja qual for a situação, sobre toda essa controvérsia do castigo e da palmada, creio que seja necessário fazer uma certeira ponderação. Educar na base da dinâmica castigo-recompensa não convém a seres humanos. Na verdade, nem cai bem, nesse caso, a palavra “educar”, pois trata-se mais bem de um treinar, de um condicionar, de um adestrar. Quando se tenta moldar um comportamento por meio da repetição constante de mecanismos de castigo e recompensa não se está educando alguém, não se está levando em conta a dignidade daquela pessoa: está-se tratando a criança como um escravo, que tem de apanhar para “entrar na linha” – ou pior, como um cachorro, que precisa fazer xixi no lugar certo, e para tal recebe biscoitos quando acerta, e tapas quando erra. Não importa o que o cachorro pensa a respeito, nem que compreenda os motivos relacionados à higiene da casa e aos métodos de limpeza do ambiente – porque, sendo um cachorro, não é possível mesmo que ele compreenda... E o senhor do engenho também não presta contas aos seus escravos. Portanto, se é este o nosso procedimento educativo padrão, não estamos considerando nosso filho em toda a sua dignidade; nós o estamos rebaixando, desprezando o seu direito ou sua capacidade de aprender a agir de forma livre e responsável.
Isso não significa que não haverá castigos. Muitas vezes será necessário que a criança sofra as consequências desagradáveis ou privativas de seus atos maus; mas, para que isso seja eficaz como educação de um ser humano, para que esse gesto tenha uma verdadeira função educativa e coerência, ele deve estar fundado muito mais na demonstração da consequência intrínseca dos atos do que numa punição exterior, alienada daquilo que a criança fez. Não uma educação na base do castigo em si, mas com base na realidade, na demonstração dos nexos entre causa e consequência, segundo os princípios morais.
Esse “castigo”, que é pensado, concebido, que é depurado por uma série de critérios, nada tem em comum com um expediente do qual os pais lancem mão para se aliviar, para que se sintam novamente um pouco no controle, ou para reconquistarem alguma autoridade na situação. Não é uma resposta impulsiva a uma situação que nos desestabilizou. Exemplo: seu filho bate ou cospe em você; no ato em que ele o faz, você quer demonstrar que aquilo foi muito errado e que não se deve fazê-lo, então age impetuosamente – “você vai ficar de castigo!”, vai ser punido por isto que acaba de fazer; ou, num quadro pior, você dá um tapa de volta na criança, como penalidade. É preciso que haja toda uma outra abordagem dessa situação, não a partir deste instante, mas anterior, feita de orientações prévias claras, de acompanhamento e prevenção – e, somente se nada disso funcionar, um castigo efetivo, já previsto e anunciado, vai se dar.
Em primeiro lugar, se demos uma ordem mal formulada, se não fomos claros, ou se demos uma ordem impraticável ou impossível, não será justo castigar. Do mesmo modo não devemos dar às crianças um castigo para uma infração que não havíamos assinalado antes, pois seria faltar com a justiça. É justo que a criança saiba, que ela seja informada, ensinada que, se ela fizer determinada coisa, receberá um castigo. Ou acaso as crianças nascem sabendo de alguma coisa? É claro que coisas graves, como bater na mãe ou xingar um professor, não podem ser premeditadas, e nós não devemos e nem conseguiríamos fazer de antemão a absurda lista de todas as coisas erradas que uma criança pode fazer. Quando acontecem, devem ser corrigidas imediatamente, como coisas inadmissíveis, e, no caso de reincidência, então vem o aviso com sua grave consequência.
Quando a criança bate no irmão, qual é a lição que precisa ser ensinada? A de que não se pode bater quando se fica irritado ou frustrado. Se nós batermos neles porque ficamos irritados com suas atitudes, o que estaremos ensinando?
Esse combinado prévio deve ser a explicitação de um sentido; ele será, de algum modo, um ensinamento sobre a realidade e a vida. Um exemplo: a criança não deixa as pessoas conversarem durante as refeições, e grita por atenção. É preciso, primeiro, chamar sua atenção sobre o fato de que aquilo é impróprio, de que as outras pessoas se incomodam, de que não é assim que se comporta à mesa. Ela deve então, num segundo momento, ser avisada de que, se persistir nesse comportamento, será afastada da refeição, e terá de comer sozinha depois. Se ela o fizer, enfim, o cumprimento do castigo anunciado será uma clara consequência de não ter seguido a regra vigente nas refeições – uma regra que é real, que é vigente para todos, de todas as idades. É uma regra de boas maneiras que está na pauta de todo este lar e de toda esta família.
Fica claro, assim, que de modo algum se improvisa um castigo. Se ele vier da sua condição emocional do momento, é praticamente certo que será desproporcional. E assim a medida das coisas ficará sendo não a gravidade das ações da criança, mas o quanto você se irritou. Sem perceber, os pais se tornam tiranos, que castigam mais ou menos conforme o seu sentimento subjetivo, passageiro – o seu egoísmo, em suma. Ao contrário, é bom que os pais conversem previamente sobre tudo que o filho tem feito, sobre em que pontos ele precisa de ajuda e de correção, e combinem de antemão os castigos, as consequências adequadas para cada situação, ajustando numa lista a hierarquia dos comportamentos, para que a criança aprenda a hierarquia de maldade e bondade nas ações – não é o mesmo botar os tênis no lugar errado e bater em alguém, e isso também precisa ser ensinado.
Ademais, esses castigos devem ser pensados pelos pais de modo a revelar para a criança, na máxima medida do possível, um valor, preferencialmente o valor que ela contraria com sua má ação. Se todo castigo for ficar sem televisão ou sem videogame, ou quaisquer outras coisas prazerosas de que a criança goste, a mensagem transmitida é que estes são os valores mais altos que existem. Não, é pertinente que ela seja privada de coisas realmente boas, e que seja levada a sentir, na sua falta, por contraste, o seu valor: as refeições em comum, os momentos em família, as leituras em voz alta, as tarefas em comum. Isso não é tirania: esses pais serão como verdadeiros reis do lar, que, juntos, tentando ser justos, elaboram um código, a lei daquele lar.
É isso o que se chama, ou o que merece por direito o nome, de educação positiva. Levando em consideração a dignidade humana, e as muitas etapas do desenvolvimento infantil, o clima básico desse lar que se almeja e do trato com os filhos é feito de calma, paciência, tranquilidade; o “normal” deve ser o sorriso e o cuidado, de tal modo que, quando demonstramos a mínima alteração na face ou no tom da voz, isso já lhes indique que algo não está bem. Envolve investigar o porquê das atitudes das crianças, em vez de as abafar logo com punições: tentar compreender os motivos observando a hora do dia em que se dão, e as causas, e tentando evitar os comportamentos ruins prevenindo, contornando, fornecendo subsídios na hora oportuna.
Quando a criança bate no irmão, qual é a lição que precisa ser ensinada? A de que não se pode bater quando se fica irritado ou frustrado. Se nós batermos neles porque ficamos irritados com suas atitudes, o que estaremos ensinando? Além de darmos o exemplo do autocontrole, devemos mostrar-lhes como resolver essas situações – de modo concreto, com uma orientação positiva. Um castigo pode ser uma peça coerente dentro de um plano educativo, e não uma válvula de escape para pais. Então, se você está educando o seu filho na base do castigo como válvula de escape, você está fazendo errado. Está faltando com o respaldo anterior, com as diretrizes e ordenações que talvez dispensassem as palmadas. “Educar no positivo” não se define por ser contra o castigo, por medo de que as crianças fiquem traumatizadas. Não é nada disso. Trata-se de não abrir mão de orientar e formar a consciência da criança para aquilo que é o certo a ser feito.
Não queremos apenas “crianças comportadas”, tolamente “obedientes”, como escravos ou animais domesticados, que, quando forem adultas, apenas trocarão de senhor, e passarão a obedecer – à mídia? Ao Estado? A um patrão, a um grupo de referência, ao primeiro líder que as recompensar emocionalmente? Queremos educar pessoas livres. “Educação positiva” nada tem a ver com permissividade. A permissividade é, na verdade, uma ausência de educação – e é preciso dizer que, em alguns lares onde estão presentes as palmadas, continua ausente uma verdadeira educação. É que educar é realmente cansativo, e pode ser desgastante: consiste de uma incansável repetição, dia a dia, várias vezes por dia, de afirmações e de conduções, até que aquilo esteja profundamente enraizado dentro da criança, dentro do cerne de sua própria liberdade. Isso não é ser “babá” do próprio filho, ou mimá-lo. Isso é de fato ensinar, é conduzi-lo a criar o hábito de fazer uma coisa após a outra, de fazer as coisas corretamente, de fazer as coisas com esmero, até que isto se firme profundamente, e se torne algo dele, um patrimônio dele, que nós transmitimos. Desse modo, conforme cresçam, os nossos filhos compreenderão as motivações, os princípios morais em que nos baseávamos, e os possuirão. Em vez de domesticar um cão, ou de adestrar um escravo, é formar um outro senhor. “Não mais vos chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor...”. Um senhor de si, capaz de liberdade e de responsabilidade, e dono do próprio coração.
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