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Samia Marsili

Samia Marsili

Maternidade

Romance e essência

(Foto: PublicDomainPictures/Pixabay)

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“A maternidade não é toda essa maravilha, esse mar de rosas que pintam! A verdade, nua e crua, é que a dor do parto é simplesmente indescritível, e depois, são noites inteiras sem dormir, dor e desconforto para amamentar, estresse, confusão, dificuldades e birras, mil problemas inimagináveis; não se consegue fazer mais nada, e a sua vida literalmente acaba. Ninguém nos alerta que será assim. Quem conta apenas lindas memórias de seus filhos e louva a maternidade está escondendo a verdade! Está edulcorando, romanceando uma realidade extremamente difícil.”

Muitas mulheres dizem coisas parecidas hoje em dia, e não só hoje em dia: sempre houve quem expressasse, de modo semelhante, uma espécie de amarga desilusão com a realidade da maternidade e da própria família. É uma voz comum, fruto de um sentimento comum, que pode tomar conta de nós e acabar fazendo essas frases brotarem, numa hora de fraqueza e desorientação, em nossa própria boca. Uma vez mais, como já apontei em outras ocasiões, esse tipo de frustração se deve à quebra de uma indevida expectativa, gerada por uma má compreensão dessas coisas e, no fundo, por uma falta de clareza sobre alguns princípios básicos, que regem tanto as realidades familiares como quase todos os âmbitos da nossa vida.

Em primeiro lugar, é preciso termos claro o seguinte: É simplesmente impossível que um relato dê perfeita conta de uma realidade concreta. Quero dizer: é impossível que, ao ouvir uma narração ou uma explicação, nós tenhamos daquilo um conhecimento tão efetivo como o de quem o vivenciou concretamente. Por mais que devamos louvar o poder da literatura e do cinema, que, por meio de nossa imaginação, abrem em nós um acervo de possibilidades de ação e de vida que nunca chegaríamos a viver de fato; por mais que seja engrandecedor trocar experiências por meio do diálogo, de modo a iluminar algo que estamos vivendo e não compreendemos tão bem; e por melhor que seja aconchegar-se no ombro amigo de alguém capaz de nos compreender e de se compadecer de nós, nada disso, no fim das contas, substitui a vivência, a experiência concreta de quem viveu na pele. E “na pele”, aqui, não é só pela força da expressão, mas tem um significado preciso.

O critério de quem louva a maternidade, apesar de todas as suas aflições, é o de quem é capaz de distinguir, justamente, o acidental do essencial

É muito diferente registrar uma informação que se ouviu, pois ela será compreendida por nossa inteligência e registrada na memória tendo como base as imagens que nossa alma for capaz de elaborar partindo daquilo que ouvimos, por meio de analogias com as memórias de outras experiências que tivemos. Ou seja, por mais que tenhamos compreendido bem e que a informação recebida seja verdadeira, ela é de algum modo abstrata, pois sua base é analógica. Quando vivemos alguma coisa concretamente, ao contrário, ela é primeiro vivida nos nossos sentidos, afetando o nosso corpo, e é a partir dos sentidos – dessa “fonte primária” – que se formam as imagens na nossa alma, sobre as quais a nossa inteligência pode então operar para enfim assimilar o conhecimento. Ou, dizendo simplesmente, como todo mundo sabe: sentir é diferente de ouvir falar.

Ora, ninguém esconde as dores do parto e as dificuldades da amamentação e do cuidado das crianças pequenas. Isso é dito em toda parte – e eu mesma, quando me questionam sobre o assunto, não escondo a aspereza da coisa ao repetir meu conselho de sempre: “No puerpério, apenas sobreviva”. Mas não adianta prevenir sobre as agruras da privação de sono, a irritação e os incômodos físicos. Não adianta contar. Quando você for passar por isso – você mesma, em primeira pessoa –, tudo será pior, pois será na sua pele. O relato é sempre menor que a realidade, não por acidente, mas por natureza.

Ademais, outro aspecto a se ter em conta é que o relato é também um filtro: ele se dá conforme uma espécie de escolha do que se quer carregar, e do que se prefere superar, esquecer e até mesmo perdoar. Isso não quer dizer, de modo algum, que ele seja uma mentira, nem que seja um “romancear”, no sentido de contar uma história ruim atenuando o mal com vistas a fixar uma narrativa higienizada. Não se trata de uma censura, nem de um filtro nesse sentido, mas em outro: essa escolha que se manifesta no relato do passado não nega nada, mas apreende e pondera tudo segundo um critério. E o critério de quem louva a maternidade, apesar de todas as suas aflições, é o de quem é capaz de distinguir, justamente, o acidental do essencial.

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Toda essa sequência de dores e sofrimentos, confusões e exaustões, por piores que sejam para a carne, e por mais que pareçam acabar conosco enquanto estão acontecendo, simplesmente não são essenciais, não definem o que é a maternidade; não definem o que é ter um filho, e nem a natureza da relação que você tem com os seus filhos. No momento em que ele chora pela sétima vez às 3h50 da manhã, o seu filho parece ser um problema, nada mais que um empecilho ao descanso necessário do seu organismo. Mas o seu filho é, na verdade, uma alma imortal, um ser espiritual que, faça mais ou menos bem ao mundo aqui nesta Terra – e desejamos que faça muito bem –, está destinado, após a morte, a alegrar com sua presença a humanidade inteira, de todas as eras, desde o primeiro até o último homem que vai existir, e também as incontáveis miríades de anjos, e o próprio Deus, nosso Criador, pelos séculos dos séculos. Ter um filho é oferecer de volta ao Criador suas parcas forças, para que, com a sua participação, um novo ser humano passe do nada ao ser, e cuidar dele é colaborar para que cresça e se desenvolva conforme suas potências, até atingir a maturidade e, em posse de sua liberdade como adulto, seja capaz de amar; e, amando, viva uma vida valiosa, verdadeiramente feliz, para encontrar, após a morte, a perpétua paz. Eu sei que é difícil ter isso em mente às 3h50, quase virada do avesso, mas é isso que você está fazendo, e não é impossível tê-lo suficientemente claro para que, naquele momento árduo, você sobreviva, sabendo que vale aquela pena que você está pagando.

Nós nos esquecemos da dor do parto porque ela é acidental, e trazer uma nova vida ao mundo é infinitamente maior é mais importante. Nós nos esquecemos das noites sem dormir e dos incômodos da amamentação porque tudo isso é acidental, e ver um ser humano crescer, tomando posse de seu próprio corpo, é muito maior. E as pessoas não enfatizam, em seus relatos e em testemunhos, a aflição que passaram nas birras, nas brigas e nas encrencas porque não estão permitindo que essas coisas acidentais ofusquem a essência do que estavam fazendo, que é dar ao mundo homens e mulheres de verdadeiro valor. Isso não é mentira. Isso não é romancear, nem romantizar. É simplesmente conseguir ver, ao menos depois de passada a dor, o essencial. E assim ganham destaque, para os olhos que veem assim, as boas lembranças e a alegria apesar de tudo, pois essa é a maneira como escolheram viver e narrar sua própria história. Na verdade, essa é a interpretação mais realista e objetiva possível, ainda que não a mais fácil de enxergar, pois seu critério é a essência.

Muitas vezes é difícil, para nós, distinguir esses planos de realidade e transitar por esses critérios, porque o ponto de vista que enxerga as coisas ruins como ruins não está errado: de fato, as coisas dolorosas para o corpo são ruins para o corpo, e as aflições psicológicas difíceis de enfrentar são ruins para a psique. Essa visão não está equivocada; ela é apenas limitada. Limitada porque está olhando o acidental em si mesmo, e em si mesmo ele é ruim. Porém, visto do ponto de vista mais amplo, que toma distância das contingências, nós vemos o que aquelas perdas num plano nos fazem ganhar em outros, e como a vida é, quase sempre, um jogo de espelhos, um chiaroscuro que temos de entrever “em espelho e enigma”, e não só com os olhos da cara.

As pessoas não enfatizam a aflição que passaram nas birras, nas brigas e nas encrencas porque não estão permitindo que essas coisas acidentais ofusquem a essência do que estavam fazendo, que é dar ao mundo homens e mulheres de verdadeiro valor

Lembro-me de uma vez, quando eu tinha então cinco filhos, em que todos ficaram doentes juntos, e com ânsias de vômito. Éramos dois, meu marido e eu, para cuidar de cinco crianças, vomitando alternadamente ou ao mesmo tempo. Que terrível! Como é ruim ficar doente, e vomitar, e sujar tudo, e como é ruim estarmos em menor número para ajudar... Mas nós sempre podemos, se regularmos nosso critério, ganhar o essencial através do acidental. Passada a aflição, hoje contando a história podemos ver quanto aqueles cinco irmãos se uniram em sua mazela, ajudaram-se mutuamente, cresceram em autonomia, ao tomar conta de si e do seu próprio balde em alguns momentos, e assim formaram seu caráter, e como nós pudemos demonstrar atenção e amor por eles, como eles puderam se sentir amados, e como tudo isso nos uniu. A virose passou, a virtude ficou. E “aquela vez que todos ficaram doentes vomitando juntos...”, que foi um dia muito ruim, entra para a história como uma oportunidade muito bem aproveitada de crescermos no amor. E podemos sempre fazer isso, todos nós.

Um ser humano é infinitamente maior do que qualquer coisa acidental. Esse é o centro, a fonte da alegria capaz de nos inundar e nos fazer suportar todos os sofrimentos, pois ter um filho sempre vale mais. Quem, após ter enfrentado todas as dificuldades, continua afirmando que preferia não ter tido filhos, lamento, tem um coração mesquinho, porque não foi capaz de ver a grandeza essencial da vida por trás dos seus reveses. Mas, se você está viva, sempre é tempo de interpretar novamente a sua história, e a partir disso orientá-la, doravante.

Reparem bem: a essência da maternidade, assim como de todo o amor, está no outro. É claro que você é essencial na maternidade, mas não voltada para si mesma: ser mãe é uma relação voltada para o filho, isto é, não é bem de você que se trata; a maternidade não é para você, ou sobre você. A maternidade consiste num profundo e irreversível vínculo em que você vai se dar, ou melhor, se trocar por algo que vale mais do que conforto, sono, tranquilidade. Gosto de lembrar do que diz o autor do Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Éxupery, num outro maravilhoso romance: “A vida não tem sentido se não nos trocamos pouco a pouco”. Trata-se de “construir o templo que dura mais do que o homem”, de nos “trocarmos alegremente por coisas mais valiosas do que nós próprios”. Desobediências, mentiras, bater no irmão, jogar comida, ir mal na escola, ter dificuldade com os amigos – o nome de tudo isso é vida! E o nosso papel é orientá-los, ajudá-los a viver a sua vida, e dividir com eles o peso de se mover neste estranho mundo, fazendo com que se tornem grandes homens e grandes mulheres – isso é maternidade. Não diz respeito a como eu me sinto, a como as coisas me atingem; diz respeito ao outro, ao que eu ensino, a como eu o faço se sentir. Você é essencial no processo, sim, mas não é a coisa mais importante. A coisa mais importante é a formação do ser humano que vai agir no mundo, e continuar existindo mesmo quando o mundo acabar. E quando alguém nos perguntar: “Mais filhos? Colocar mais gente neste mundo tão cruel, tão maluco e tão ruim?” “Sim”, deve ser a nossa resposta, “mais, e melhores, pessoas de grande coração e de muita coragem, para que amem e, com seu amor, tornem esse mundo um pouco menos cruel, maluco e ruim”, à sua medida, sem ilusões. Nós temos, sim, a capacidade de fazer isso. As pessoas que ouvem esse chamado e o aceitam, e mesmo muito imperfeitas não desistem de enfrentá-lo, não estão romantizando. São pessoas maduras que, sem desconsiderar suas limitações, compreenderam seu papel naquela relação.

Quem, após ter enfrentado todas as dificuldades, continua afirmando que preferia não ter tido filhos, lamento, tem um coração mesquinho, porque não foi capaz de ver a grandeza essencial da vida por trás dos seus reveses

Quando se diz “romancear”, faz-se, mesmo que involuntariamente, uma referência àquela história que, por mais de uma razão, é exemplar no gênero: a história do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Dom Quixote era visto como um louco, um lunático, que via coisas corriqueiras como sendo grandiosas, ou gente comum como personagens nobres, e assim, ao tentar defender seu ideal de cavalaria, de justiça e de altruísmo, acabava se metendo em trapalhadas e – digamos de uma vez – pagando mico. De fato, no contexto da história, Dom Quixote está realmente imaginando coisa. Mas não é isso que o livro quer dizer, e não é esse o sentido do romance. Lembro de umas passagens: Quando acredita estar libertando um bando de prisioneiros, Dom Quixote acaba libertando, por acidente, um jovem estudante e sua amada. Quando confunde uma prostituta com uma princesa, ele acaba salvando a tal mulher de seus raptores, e ela volta à sua cidade natal para viver uma vida digna. Quando pensa estar lutando contra um gigante, derrota um grupo de homens que importunavam uma mulher, e a salva também. Na vez em que acredita estar curando uma princesa encantada, ajuda a curar uma camponesa que fora maltratada pelo marido, e ambos acabam se reconciliando. As situações são constrangedoras para ele, e muito engraçadas para nós que estamos lendo. Mas não seremos todos nós assim? Parece, aos olhos do mundo, e aos olhos da nossa própria carne, que o melhor é fugir dos sofrimentos, assim como, aos olhos de todos, não passavam de moinhos de vento aqueles gigantes. Mas o louco Quixote, que romanceia a vida, às vezes atinge a sua verdade melhor que os outros. Os que viam as coisas “como elas são” salvaram alguém, ou curaram? É preciso ser um pouco quixotesco para entrever as essências neste mundo.

Um aviso, muito útil, para evitar desconcertos: quando digo estas coisas, estou tratando do normal, das mães, e de qualquer pessoa, que estejam normais e saudáveis — que, espero, sejam a maioria. Há pessoas que podem estar enfrentando dificuldades realmente especiais, como uma depressão, variações hormonais ou transtornos de qualquer espécie. Estas precisam, para poder acessar e viver o que estou dizendo, primeiro alcançar a base corporal e psicológica indispensável, a saúde, e para tal precisam de ajuda – o médico, os medicamentos, a terapia. A visão delas pode estar deturpada por esses fatores, que as incapacita de considerar uma nova perspectiva. Mas não podemos deixar as exceções perturbarem nossa consideração do que é normal e desejável.

Excetuados esses casos, só me resta repetir: focar o aspecto inferior e ruim das coisas não é, como muita gente acredita, “dizer a dura verdade”, acessar a “realidade” ou “não romancear” as coisas. Quem opta por expor toda a parte ruim de sua casa, de seus filhos e do seu casamento, e revelar todas as coisas negativas para mostrar “como as coisas são” não está mostrando “a vida verdadeira”, pois sua vida não se resume às suas tragédias. Isso não é ser objetivo, é apenas um outro critério, bastante questionável, posto que de nível inferior. Muitas vezes, é a nossa própria reclamação que cristaliza situações e condutas que podiam ser passageiras, e que já poderiam ter sido superadas, e talvez já tenham sido, mas nem se percebeu. Assim tratamos nossos familiares, e os outros começam também a tratá-los, conforme a sua reclamação. Quem deveria protegê-los e ajudá-los acabou por os expor, e, nessa exposição, coagular um defeito e elevar a essencial algo que era acidental.

Os sofrimentos e as dificuldades que você está vivendo não são a maternidade, nem o seu casamento, nem a sua família; estes serão feitos da sua maneira de reagir a essas dificuldades. A sua maternidade será esta: a de que seu filho precisa, e que você vai lhe dar

É a própria pessoa quem está optando por olhar para a vida por essa face, talvez buscando assim, sem perceber, confortar a sua inveja. A vida das pessoas não precisa ser uma tragédia para ser real, e os outros não precisam ser piores para que você não se sinta tão mal. Existe, sim, gente melhor do que nós, que leva a vida melhor do que nós, não somente na esfera da família, mas em outros aspectos, como o estudo, o trabalho, a religião. Eles devem ser para nós exemplos inspiradores, como metas mais elevadas a se atingir, e não “mentiras que precisam ser desmascaradas” para ficarmos mais tranquilos com nossa pequenez.

Os sofrimentos e as dificuldades que você está vivendo não são a maternidade, nem o seu casamento, nem a sua família; estes serão feitos da sua maneira de reagir a essas dificuldades. A sua maternidade será esta: a de que seu filho precisa, e que você vai lhe dar; e do mesmo modo o seu casamento, e o seu lar. Não importa tanto se você “gosta de ser mãe” porque, mesmo nas conquistas deste mundo, como tornar-se um grande empresário, ou médico, ou seja lá o que for, nem sempre gostamos do que é preciso fazer para atingir esses objetivos, e quem constrói grandes impérios na maior parte das vezes tem, para isso, uma vida de cão. Um grande império e uma vida de cão: as duas coisas são verdadeiras; uma é a acidental, a outra é a essencial. Nós somos capazes de escolher por qual face vamos mirá-la – e a segunda vale mais. Não seja uma vítima da primeira, mas lide com ela de maneira elegante, digna e honrada, escolhendo o que é essencialmente bom para você. Uma vida apenas folgada e egoísta é pequena, vazia.

Quando me esforço por lembrar sua verdadeira essência, seu sentido profundo, eterno e imortal, não quero romancear a maternidade. Quero mostrar que é verdadeiramente possível viver bem a romanesca realidade da família, e que se pode impor metas altas, e tentar, e conseguir. Dá certo. Não estou fingindo que as dificuldades não existem; estou mostrando como e por que superá-las. Quero mostrar que tudo depende de uma escolha, de um critério, do que se prefere. Estou tentando revelar que esse “romance” é mais real que a matéria, que voltará ao pó. Mas, para enxergar o essencial, e vislumbrar os gigantes e as princesas, é preciso ver o invisível, e não basta usar os olhos. Não à toa dizia, novamente, Saint-Éxupery: “O essencial é invisível aos olhos”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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