Quem nunca sonhou com o livro definitivo? Quem nunca imaginou, por um instante, o livro perfeito? Ao qual não faltasse nada, onde estivesse contida toda a sabedoria, de maneira explícita e revelada? Um livro completo, dentro do qual repousasse a história perfeita, o único livro necessário? Aquelas páginas, ao mesmo tempo antiquíssimas e novíssimas, imantadas de segredo, entre duas perfeitas capas vermelhas, costuradas com reluzentes fios de ouro? O livro que fizesse compreender a verdade.
Esse sonho não ressoa em todos nós, ao menos quando nos entusiasmamos com um caderno novo, com a brancura e o cheiro da primeira página intacta, e aquele cuidado por começar algo sem defeito, por escrever com primor e garbo do início ao fim? Quem nunca quis dar início a um diário de anotações, simbolizando, no esmero com que trabalharia nele, o esmero em viver a própria vida? O livro da vida, o livro da minha vida, tingido no papel por minha própria mão? De fato, a vida humana é como um livro, pois a história é a substância mesma da vida humana, isto é, a vida de uma pessoa é exatamente a narrativa que ela conta de si mesma ao viver no tempo, e dentro das circunstâncias em que se encontra, as quais ela muitas vezes não escolheu. Elas podem ser semelhantes para muita gente, mas o que nos distingue e nos torna únicos, o que nos torna nós mesmos, é a nossa resposta, e essa é nossa história, a nossa maneira própria de narrar essas coisas, o livro da nossa vida.
Toda história pode ser interessante: depende da forma como for contada. Os mesmos acontecimentos, as mesmas circunstâncias e os mesmos reveses podem compor uma história inteiramente trivial, irrelevante, ou mesmo uma história triste, derrotista e fracassada; ou então podem, mudando-se o olhar que se lança sobre eles, tornar-se matéria para uma história rica, digna de ser lembrada, engrandecedora e que inspira esperança. Atos heroicos mal contados podem soar muito chatos, e detalhes quase imperceptíveis podem figurar numa fabulosa epopeia interior. A arte de narrar é a arte de apreender a unidade de uma história, a sua essência, sua constante; no caso de uma vida humana, equivale a descobrir o seu núcleo pessoal, que é como o seu fio condutor. É, em suma, a arte de encontrar o adequado ponto de vista sobre os fatos materiais e sobre as relações, quer dizer, encontrar a adequada interpretação vital, que advém da profundidade da atenção e dos valores que se preza.
Os donos da nossa vida somos nós, somos nós que temos responsabilidade por nossos atos, para além e apesar de todas as circunstâncias externas que nos acossam; a forma como elas vão impactar a minha vida depende de mim, e não de qualquer outro fator
Saber narrar uma vida é efetivamente conhecê-la, é captar ou dar-lhe sentido, e assim perdê-la ou salvá-la. Tudo isso nós podemos ver facilmente no cinema e na literatura, com as vidas de personagens ficcionais ou de famosos personagens reais. Mas o mesmo vale para todos nós, personagens reais que não somos famosos: talvez não venhamos a ter filme nem livro publicado sobre a nossa biografia, mas nós a teremos escrito, com efeito, em material bem mais durável que o papel, com nossas ações no tempo e no espaço, uma história irrevogável, de vez que o que está feito não pode ser desfeito. Mas, para que realmente escrevamos a nossa história com consciência e liberdade, é preciso primeiro que vejamos a nossa vida desse modo, e que saibamos antes de tudo ler o livro da nossa própria vida. Lendo o nosso passado e apreendendo a sua unidade, e esclarecidos como narradores em primeira pessoa, teremos pela frente as páginas em branco que nos restam, e que podem ainda alterar completamente o conjunto da obra.
É claro que isso se dá num determinado momento, após uma fase em que nossa vida é, quase inteiramente, aquilo que nos acontece, aquilo que nos dão e que nos ensinam, o que fazem conosco – e, evidentemente, nisso reside toda a importância dos pais e da educação doméstica. É pelos anos da adolescência que se dá uma “descoberta do eu”, passados aqueles outros da infância em que somos semiconscientes, conduzidos e orientados por nossos pais ou pelos demais adultos, e em que vamos tomando posse do nosso corpo e de hábitos muito básicos. A criança pequena percebe, primeiro, que ela e a mãe não são a mesma coisa, e então volta-se para si mesma, para compreender quem é corporalmente, qual sua unidade material. Vêm, em seguida, todas as pequenas autonomias físicas e todos os progressos dessa fase da vida, entre os quais a aquisição e o domínio da linguagem. Na adolescência, essa maturação terminou, e o corpo infantil já começa a preparação para transmutar-se no corpo adulto – e então é hora de conquistar uma outra autonomia maior, é hora de o adolescente tomar posse de si mesmo no sentido existencial: de saber que é responsável pelo próprio destino.
Assim como a criança com relação ao corpo, o adolescente precisa perceber que não é a mesma coisa que os pais com relação à sua vida e à sua história. Os pais não decidirão para sempre o que ele deve ser, nem arcarão mais com as consequências de suas escolhas. E nós, como pais e educadores, devemos ajudá-los nisso, a se perceberem protagonistas de sua história, a conseguirem entrever a unidade de sua vida, e o seu núcleo pessoal, livre e responsável. Devemos ajudá-los a ver que suas atitudes são para valer, não são mais treino nem escola, e têm consequências para si mesmos e para os outros. Precisamos, enfim, ajudar os adolescentes a enxergarem a vida sob a ótica de uma narrativa, de uma história, que vale a pena ser contada em primeira pessoa.
É preciso que tenhamos muito claro, para podermos deixá-lo claríssimo para os nossos filhos adolescentes, que essa maneira como contamos, como narramos a nossa própria história, não é simplesmente algo poético ou motivacional, que nos conforta ou deixa iludidos diante dos fracassos, ou que amortece as porradas da vida. “Nós nos sentimos melhor pensando assim, nessa coisa bonita de livro da vida, mas a verdade, no fundo, no fundo, é que a vida é dura. Quem teve mais sorte, melhores condições, quem nasceu ou acabou sendo mais favorecido, ótimo; quem tem uma situação difícil, prejudicada, quem foi desfavorecido ou mesmo machucado pela vida, quem tem uma história cruel, não tem jeito... É melhor que pense assim, que sendo otimista dará sentido à sua vida, e ao menos ela se tornará suportável...” – se é isso o que se pensa, no fundo, no fundo, é melhor deixar essa conversa de lado, pois de clorofórmios e mentiras já estamos fartos. Não. A coisa é invisível, mas é mais concreta e mais poderosa do que nove tempestades: a maneira como olhamos para a nossa vida, a profundidade com a qual conseguimos compreendê-la, o modo como nós vemos a nós mesmos, isso tem palpáveis consequências sobre as nossas ações, sobre o seu efeito, sobre a nossa vida e sobre a vida das pessoas que estão ao nosso redor, e, num círculo que se amplia para além do nosso controle, sobre a vida de muito mais gente, inclusive de gente que ainda nem veio a nascer.
Antes dos adolescentes, nossos filhos, é preciso que muitos adultos, não importa quão tarde seja, enfim entendam: os donos da nossa vida somos nós, somos nós que temos responsabilidade por nossos atos, para além e apesar de todas as circunstâncias externas que nos acossam; a forma como elas vão impactar a minha vida depende de mim, e não de qualquer outro fator. E qualquer um que, amargo de ressentimento, responda de imediato “mas isso é porque você não sabe...”, ou “isso porque para você é fácil...”, está, assim, escolhendo o que quer da própria vida, está optando pelo ressentimento – digo sem diminuir o tamanho da dor de ninguém, mas sim confiante de que ninguém tem na vida dor maior do que a que é capaz de suportar.
Se temos um olhar pessimista, derrotista ou vitimista sobre nossa história e sobre os eventos que sucedem conosco, se buscamos sempre interpretar nossas dificuldades, falhas e defeitos como sendo culpa de quem nos fez mal, e nossas inseguranças e fracassos como determinados por características ou condições adversas incontornáveis, pois muito bem, é essa a vida que teremos: a da vítima, cujo maior prêmio, lá no fundo da nossa derrota, será a compaixão. Alguém gostaria de ouvir essa história? Ora, esse olhar, essa interpretação que damos para nossa própria vida, atrai e afasta tais e quais pessoas de nós, granjeia-nos ou nos faz desperdiçar novas oportunidades, abre-nos ou deixa de abrir novos caminhos, e traça as nossas rotas no decorrer dos anos. Se, ao contrário, conseguimos adotar uma posição humilde e esperançosa, confiante e corajosamente autocrítica, isso certamente põe a nossa narrativa num crescendo de força, de superação, de fecundidade. Isso traz para perto de nós gente desse mesmo brio, capaz de efetivamente nos ajudar. Faz com que as pessoas olhem para nós de outro modo, com outra qualidade de respeito, com outras expectativas.
Se temos um olhar pessimista, derrotista ou vitimista sobre nossa história e sobre os eventos que sucedem conosco, é essa a vida que teremos: a da vítima, cujo maior prêmio, lá no fundo da nossa derrota, será a compaixão
Nossos filhos adolescentes, então, como devem olhar para a própria vida nessa aurora da liberdade? Que valor darão a cada coisa: ao nosso próprio lar, à sua vida escolar, às suas amizades? Que prioridades escolherão, ainda que o futuro, tão nebuloso e incerto, seja para eles uma grande aposta? Em que apostarão? Temos de orientá-los no uso de sua liberdade, mas que, sendo liberdade, só pode ser posta em ação pela própria pessoa, e eles vão errar muitas vezes. Entretanto, que postura adotarão com relação aos seus próprios erros? Como reagirão ao brilho de suas qualidades, ou à humilhação de seus defeitos? Soberba, audácia? Humildade, honestidade? Ratificarão suas más ações com fanfarronadas, ou as retificarão com uma difícil reparação? E assim, a cada lance, vão escrevendo sobre a página branca de seu caderno novo – e essa escrita, como sabemos, pode deixar marcada a página de trás...
E por que a grama do vizinho é sempre mais verde? Por que é sempre mais fácil contar a história do outro, que parece melhor que a nossa? Sobretudo para o adolescente, o outro parece sempre ter tido mais sorte, ser mais bonito, mais dotado, mais desenvolto, mais capaz. É mais fácil olhar para o lado e, vendo um recorte, assim, de fora, juntar começo, meio e fim, e enxergar uma unidade. Bem, como ajudar um filho, ou mesmo um amigo que esteja num momento difícil e turvo, a se ver assim, a fazer isso consigo próprio? Como ensiná-los a acessar o argumento do roteiro de sua vida, de onde veio, onde está, e para onde quer ir? Como ajudá-los a ler o livro da própria vida, e a saberem-se protagonistas?
O que nos dá posse de nossa história pessoal é a nossa memória. A memória, que é o que organiza todos os fatos, as emoções, todas as ideias de nossa vida numa narrativa coesa, é quem tem a função de ir aos poucos consolidando a nossa personalidade. A memória é como um marcapasso do crescimento pessoal. Alguém que guarde e possua, e que viva a memória de tudo aquilo que é, por conta de tudo aquilo que já foi e que decidiu ao longo de sua vida, e assim pode ter claro para onde é capaz de ir, e para onde quer ir, esta é uma pessoa madura. Quem não tem memória, quem não sabe de onde veio, nem onde está e nem para onde vai, cujas experiências não têm unidade, é uma pessoa imatura. Só a memória apreende, integra e entesoura a nossa experiência, e faz o lastro do nosso eu.
O processo de guardar uma experiência na memória, e tudo o que isso inclui, é o que faz uma experiência de vida tornar-se nossa, dentro do quadro de valores e segundo a interpretação que queiramos lhe dar. Muitas experiências humanas, boas e ruins – alegrias, perdas, dores, conquistas – são iguais para todos, são capítulos semelhantes da vida de muita gente; quando as guardamos na memória e as integramos à autoria de nossa vida, porém, elas são personalizadas. São como os poemas, cujas palavras não mudam, mas que, quando alguém os aprende de cor, passa a possuí-los como seus – os aprende de cor, de coração: guardar na memória é guardar no coração, e o coração é o nosso tesouro. É dele que vem tudo aquilo que vamos ainda pensar e falar, o modo como vamos agir, ou como vamos calar e nos omitir. Em nossa vida transbordará aquilo de que o coração estiver cheio, tal é a importância dessa atitude reflexiva, ponderativa ou interpretativa, esse gesto de leitura da própria vida que é guardá-la, compilada, na memória.
E como se faz isso? Ora, a porta da nossa memória é a nossa atenção. A atenção é a boca pela qual entra na memória a ordem ou a desordem do mundo, é por ela que virá cada nova linha da biografia interior que havemos de escrever. É a atenção quem vai constituir uma memória ordenada e rica, ou uma gaveta bagunçada, atulhada de cacarecos, na qual nunca se consegue encontrar aquilo de que se precisa. Se minha atenção é bem formada e funcionante, eu aproveitarei em meu benefício tudo aquilo que a vida vier a me oferecer, e aprenderei o que cada coisa pode me ensinar. Se minha atenção é débil, quer dizer, se passo pela vida desatento, distraído, perderei o valor das coisas, que passarão por mim como num fluxo em que nada é retido; passarei adiante joias e preciosidades sem ter notado a sua valia. Ou pior, guardarei aquilo que não devia ser guardado, reterei em minha memória o lixo que devia ter descartado. De minha família, por exemplo, perderei as conquistas, os gestos de amor, os toques de cuidado e as risonhas alegrias, e reterei as brigas, os desentendimentos matrimoniais, os momentos ruins entre irmãos, e guardarei esses rancores no coração. O que construirei, passo a passo, página por página? Que história quero contar, enfim?
Façamos isto por nossos filhos, por nossos adolescentes: ajudemo-los a ler os livros de suas vidas, em primeiro lugar, dando-lhes o seu passado. Contemos a eles a sua origem, o que é tão dramático e difícil no nosso caso, no Brasil; na medida do possível, contemos a eles como vieram de longe seus antepassados imigrantes, a história dos seus avós, a nossa infância, a nossa história; contemos da gravidez e de quando eles nasceram, de tudo o que fizemos e inventamos para eles, as situações marcantes, aquilo que eles já apontavam desde quando muito pequenos; e isso não para rotulá-los ou para limitá-los, mas para ajudá-los a se conhecerem, a verem suas próprias qualidades e defeitos, como são objetivos. Leiamos para eles a parte de sua vida que fomos nós, de certo modo, que escrevemos para eles, aquilo que lhes demos em herança.
A porta da nossa memória é a nossa atenção. A atenção é a boca pela qual entra na memória a ordem ou a desordem do mundo, é por ela que virá cada nova linha da biografia interior que havemos de escrever
Então, ofereçamos a eles ajuda para que construam a sua chave interpretativa, o seu valor, a clave em que farão a sua própria leitura: ajudemo-los a trabalhar a sua atenção – e isso desde muito cedo, não só na adolescência. Que prestem atenção ao bem que os outros fazem a eles, sejam os irmãos, professores, funcionários, quaisquer pessoas; que atentem para os tristes, os isolados, os indefesos; que valorizem os gestos de coragem e as qualidades dos amigos; façamos com que reparem nas lições que as situações ruins e constrangedoras nos podem ensinar, isto é, ajudemo-los a atentar, e a guardar na memória, de cada circunstância, aquilo que vale mais, aquilo que vale registrar no livro da vida que queremos compor, e o modo de fazê-lo. Serão assim pessoas atentas, capazes de garimpar e colher as preciosidades da vida, e leves de carga inútil, livres do lixo que não ganhamos nada em carregar.
Não castiguemos tudo a toda hora, nem sejamos cobradores que gritam e brigam constantemente. Com boa dose de compaixão e empatia, sabendo que é difícil enxergar e assumir os próprios erros, e muito fácil ver e julgar os alheios, ajudemos nossos filhos a construírem progressivamente um espírito de autoexame, de humildade e de reflexão. Num ambiente de serenidade e de diálogo, será possível aprender efetivamente com os próprios erros, e conquistar assim uma grande riqueza, uma riqueza necessária. Mesmo sendo ainda adolescentes, poderão dizer, como Dom Quixote, “eu sei quem sou”, o escudo mais poderoso que há contra as insinuações maliciosas, o bullying, contra as fofocas e as pressões dos grupos, e contra todas as forças opressivas que vêm contra nós na vida adulta.
O livro da nossa vida, é a Deus, enfim, que apresentaremos, e é Ele quem o lerá, com seu olhar muito misericordioso, e esperamos que inclua a nossa história, abreviada em nosso nome, no verdadeiro Livro da Vida
Assim, mesmo diante de uma situação péssima, eles terão aprendido a julgar objetivamente e a assumir sua responsabilidade, dizendo: “Errei, sim” ou “sofri, sim; mas e de agora em diante, o que posso fazer?” Verão que algumas coisas ruins são momentâneas, são etapas necessárias por meio das quais chegamos a outras, e que o livro da nossa vida não é imaculado, monótono e irrepreensível – ninguém jamais escreveu um caderno perfeito –, mas uma aventura cheia de embaraços, impasses e viradas. Muito logo verão, na verdade, que em seu centro está uma grande, uma enorme virada, uma grande conversão: será quando, após essa “descoberta do eu”, fizerem ainda uma nova incursão, um novo passo em seu desenvolvimento, e fizeram a grande “descoberta do outro”. O adulto maduro, que completou seu crescimento, verá então que o sentido dessa história, que o clímax desse filme ou desse livro da nossa vida que escrevemos está em deixá-la se perder, em transcender de si mesma para que possamos amar de fato, para que ela seja entregue ao próximo, ao outro – a esse outro que é, em última instância, o Outro, o Absoluto, para o qual ofertaremos, ao fim e ao cabo, a nossa história.
Por isso é preciso ensinar, também, nossos filhos a orar, a referir diariamente a sua responsabilidade ao grande e único narrador onisciente, àquele que é atento a tudo, e ao qual nada nunca escapa; àquele em cuja memória nós estamos guardados. O livro da nossa vida, é a Deus, enfim, que apresentaremos, e é Ele quem o lerá, com seu olhar muito misericordioso, e esperamos que inclua a nossa história, abreviada em nosso nome, no verdadeiro Livro da Vida.
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