É um alívio quando chegamos em casa, e podemos enfim tirar os sapatos que apertam, trocar aquela roupa por algo mais confortável e finalmente afrouxar, também, aquela atenção e aquele esforço que fazemos, na rua, no trabalho e na casa dos outros, por medirmos nossas palavras, contermos nossas emoções e frearmos tantos impulsos. Lar, doce lar! Aqui podemos ser nós mesmos. Mas... quem somos nós mesmos? Isso quer dizer que aquele que se esforça por agir melhor na frente dos outros — dos amigos, da grande família, de outros profissionais —, que tenta ser mais delicado, cortês e generoso, é falso, e estamos fingindo? Quando temos modos à mesa, e buscamos falar baixo, de maneira sempre respeitosa, sendo gentis, agradecendo e pedindo “por favor”; quando não aceitamos sair de casa se não estivermos devidamente vestidos, com o cabelo penteado, ou maquiadas, ou de banho tomado — nada disso é “nós mesmos”, só vaidade e medo das consequências de se quebrar os códigos sociais? Acaso “eu mesmo” seria aquele que se permite falar mal dos tios e dos avós no carro, assim que se despede deles, que não se priva de gritar e dar livre vazão à raiva, reclamar e bufar por tudo, comer mais da sobremesa que os outros, jogar-se no sofá de qualquer jeito, com um moletom rasgado, e sujar tudo de catchup?
Sim, a maioria de nós associa, mais ou menos conscientemente, o esforço por se comportar bem ao exercício de uma aparência exterior, a uma obrigação enfadonha, da qual estamos um pouco livres em casa, com nossa família. No tempo que passamos em nosso lar, acreditamos poder agir de maneira espontânea, como “quem de fato somos”, afinal, com aquelas pessoas nós temos intimidade. Somos ou não somos, dentro do seio da família, amados por quem somos?
Podemos abordar a questão em dois níveis, pelo menos, sendo o primeiro aquele de C. S. Lewis, quando tratou do assunto em seu livro Os quatro amores. Ele afirma ali que, de fato, a afeição entre os membros da família está associada àquele aconchego que sentimos com as roupas velhas, a tranqüilidade e os momentos de descuido, e mesmo nas pequenas liberdades que tomamos uns com os outros, que seriam grosserias se feitas com estranhos, mas que, entre os que se amam, fazem brilhar a existência de um vínculo secreto. Porém, assim como existe uma cortesia pública, existe também uma cortesia doméstica, que, como a primeira, também tem por princípio que ninguém deve dar preferência a si mesmo. Ausência de formalidade não significa ausência de cortesia, uma cortesia incomparavelmente mais sutil, sensível e profunda que a cortesia pública. Daí o motivo, continua Lewis, pelo qual a etiqueta de um homem em família é o que mais revela o verdadeiro valor de sua etiqueta “em visita” ou “na festa”. Em casa, podemos dizer que alguém “é um porquinho”, podemos tirar sarro e pregar pequenas peças, mas nunca para ferir, humilhar ou dominar, e sim o contrário. Em suma, ser afetuoso, ser íntimo, é tomar liberdades; mas a maneira de fazer isto equivale a uma verdadeira “arte de amar”.
Isso quer dizer que aquele que se esforça por agir melhor na frente dos outros — dos amigos, da grande família, de outros profissionais —, que tenta ser mais delicado, cortês e generoso, é falso, e estamos fingindo?
Isto é muito verdadeiro, e é muito valioso meditar sobre isso para melhorarmos nossas relações familiares, e para que as façamos florescer mais a cada dia, e a cada ano. Mas um outro nível em que podemos abordar a questão é mais profundo, e consiste justamente em questionar o que significa, exatamente, “ser si mesmo”, e ser espontâneo. Algumas pessoas acreditam que somos realmente nós mesmos quando pautamos nossas ações pela lei do menor esforço, quando nos deixamos “ao natural”, sem perceber um fato muito básico, que é o ser humano não ser um “bom selvagem”, de quem o bem e a generosidade brotam espontaneamente; quando nos deixamos ao natural, sem fazer esforço algum, o que brota de nós é uma porção de coisas ruins: o egoísmo e o amor-próprio, a falta de cuidado, a despreocupação com o próximo, desejos mesquinhos, a preguiça, a mentira, a raiva — tudo o que está na superfície do nosso ser. Quando vivemos totalmente “espontâneos”, não estamos sendo, como se costuma dizer muito hoje em dia, a “melhor versão de nós mesmos”.
Nós não somos pessoas íntegras por natureza, em quem todos os aspectos e todos os desejos e necessidades estão ordenados pelo princípio da razão, como se diz que eram Adão e Eva no jardim do Éden. Nós, ao contrário, precisamos nos treinar na virtude, e com dedicação, suportando o fato de que esse treinamento seja incômodo para nossas tendências espontâneas, até que, enfim, essa arte de amar se incorpore em nós como uma segunda natureza. Portanto não há mal nenhum e nenhuma “falsidade” condenável em nos esforçarmos por ter melhores modos, mesmo no ambiente acolhedor do lar. Pelo contrário: esta será uma busca por algo ainda mais verdadeiro do que aquilo que nós já possuímos, por um “si mesmo” mais profundo do que o que somos por ora, e este é o sentido tanto da frase de Jesus — “negue-se a si mesmo” — quanto da dos antigos gregos — “torna-te quem tu és”, pois, explica Louis Lavelle, “não é possível tornar-se o último sem negar o primeiro”. Hugo de São Vítor conta que, na sua escola, onde os interessados ingressavam para aprender as letras, as artes liberais e depois aprender sobre a Bíblia e a sabedoria, a primeira coisa, que poderia durar anos, era aprender os mores, os bons modos. Ou seja, a primeira etapa era uma educação “moral” de fora para dentro: primeiro dominando o corpo, domesticando a sua espontaneidade, por assim dizer, para que, uma vez estabelecidos esses hábitos, o aluno pudesse se voltar para o seu interior. Do contrário, o seu interior seria invadido pela bagunça que vem de fora, do corpo desengonçado — e, por mais que estudasse, a sua alma continuaria sendo igualmente desengonçada. E os nossos filhos em casa, assim como esses alunos de séculos atrás, aprendem por imitação: vendo e copiando os nossos gestos, o nosso modo de nos mover, de falar, de comer, etc.
Em geral, deixamos as melhores roupas para o trabalho, ou para sair, e em casa usamos nossas piores roupas: as velhas, as mais descuidadas, as roupas mais amarrotadas, ou até mesmo furadas. É claro que seria inteiramente inadequado se nos vestíssemos em casa todos os dias do mesmo modo como nos vestiríamos para uma festa de casamento. A nossa roupa deve ser adequada à circunstância, e às atividades que desempenhamos nessa circunstância. Mas, justamente por isso, se abrirmos nossos olhos para a verdadeira dimensão, para o valor daquilo que fazemos em nossa casa e de quem está ali conosco, ficará claro o cuidado que devemos ter. Na primeira infância, o elemento sensorial e imagético é extremamente fundamental, e deixa gravado nas crianças uma profunda impressão. No futuro, quando forem se relacionar com outras pessoas, certamente estarão influenciadas pelos critérios que lhes ensinamos como aceitáveis, e irão buscar quem tenha os mesmos. Se virem apenas desleixo a infância inteira, não devemos estranhar, quando forem adolescentes, se os rapazes namorarem meninas sem pudor e sem cuidado consigo próprias, nem se as meninas encontrarem um par avacalhado, de cueca aparecendo, descabelado e de camiseta furada. A atenção com a vestimenta, dentro de casa, é uma maneira de cuidar, e é uma via de educar, porque mostra que nos importamos com nosso próprio corpo e com nossa intimidade, e que nos importamos com o outro. O cuidado com o exterior, em vez de ser um cuidado com a “aparência” no sentido de falsidade, deve representar o nosso esforço por ser alguém de fato melhor e mais bonito, que não somos espontaneamente.
E os nossos filhos em casa, assim como esses alunos de séculos atrás, aprendem por imitação: vendo e copiando os nossos gestos, o nosso modo de nos mover, de falar, de comer, etc
Mas é evidente que o que estou dizendo não se limita às peças de roupa e ao modo de vestir. Isso se estende para todo o comportamento, o modo de estar, que se manifesta no caminhar, em como tocamos as coisas, em como nos sentamos, enfim, numa elegância, no sentido de que, ao agir, elegemos, escolhemos conscienciosamente o que convém. Nós não vamos caminhar rígidos, de um jeito artificial e incômodo, como se estivéssemos num lugar formal, nem precisamos nos sentar como se estivéssemos numa audiência com o Papa. Mas, dando o devido valor àquilo que pretendemos com o nosso lar, sentaremos de uma maneira adequada, e não sempre largados e estrambelhados, ou de maneira vulgar. Na maneira de falar, tomaremos cuidado com as palavras, e, se buscamos ser corteses e gentis com as pessoas de fora, e na rua, antes devemos prezar por isso com nossos familiares.
A família foi feita para ser o centro da nossa vida, onde está o nosso coração, e onde temos a oportunidade de alargá-lo e de torná-lo mais generoso. Ali estão as pessoas que valem para nós mais do que qualquer outra que possamos encontrar na rua e no trabalho, e o que nos propomos a viver ali com elas é mais importante que tudo o mais: é a verdadeira finalidade de tudo o que estivermos fazendo na rua ou no trabalho. Portanto, o nosso lar não deve ser o lugar em que nos abandonamos a “nós mesmos” — o fraco, o superficial —, mas o primeiro lugar em que buscamos “nos tornar quem somos”. Ali devemos ser, já por antecipação, por meio da nossa intenção de entrega amorosa, quem queremos ser. Nós devemos guardar para aqueles que mais amamos, por assim dizer, “a sobremesa”, aquilo que de melhor conseguimos ser.
Essa intenção, uma vez esclarecida, pode irradiar seus efeitos até coisas aparentemente insignificantes da nossa conduta; mas, dessas mesmas insignificâncias, dessas pequenas ações feitas com o devido cuidado, acabaremos recebendo o sumo espiritual. Do nosso centro que ama, irradiará para as bordas; e as bordas, que nos são mais acessíveis, mais materiais, serão moldadas para dar suporte ao exercício interior e, assim, como no pulsar de um coração, vamos nos transformando, dia a dia, em alguém novo, um “nós mesmos” que nem nós conhecíamos.
“Ser si mesmo” não acontece quando relaxamos, e deixamos a espontaneidade nos dominar; “ser si mesmo” é uma ação constante e amorosa: é um “tornar-se quem se é”: é formar, com ajuda do Céu, a nossa personalidade. E “a existência humana não tem outro fim senão atingir a forma mais rica e a mais perfeita de personalidade; como o escultor modela e decora as figuras de argila, cada homem deve propor-se, como tarefa fundamental, modelar sua própria estátua. (...) Fazer-se a si mesmo: extrair, da criança que antes se foi, do ser mal delineado que se arriscaria permanecer, o homem plenamente homem cuja imagem ideal se entrevê — tal é a obra de toda a vida, a única obra a que essa vida possa ser nobremente consagrada” (Henri Irénée-Marrou).
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