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Samia Marsili

Samia Marsili

Ternura e gratidão

Redescobrir palavras, redescobrir afetos

ternura gratidão
Ternura e gratidão são sentimentos que precisam ser incentivados dentro da família. (Foto: Imagem criada utilizando ChatGPT/Gazeta do Povo)

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Quantas palavras você já ouviu hoje? Quantas já pronunciou, quantas já leu ou escreveu? Eu, por ironia, ainda não sei com quantas palavras hei de dizer, logo adiante, o que tenho em mente, neste instante em que me ponho a escrever. Não sei, portanto, a quantas palavras vou submetê-lo, caro leitor, como preço por tomar ciência das minhas meditações, isto se é que vai lhe interessar ler até a última linha. Sei que não posso ultrapassar os limites do jornal. Não estamos mais na era do papel impresso, é bem verdade, em que os editores obrigavam os colunistas a cortar seus textos cruelmente – naquelas redações cheias de fumaça de cigarro, apagados em grandes cinzeiros de vidro verde... Contudo, há hoje em dia, na era digital e da internet na palma da mão, uma limitação muito maior! Que curioso fenômeno. O homem que poderia escrever, ler e dizer tudo vê as palavras a serem lidas justamente como um preço, pois custa à nossa atenção, erodida pelos algoritmos, acompanhar um parágrafo longo como este sem sentir verdadeiro desconforto.

“Seus artigos são muito bons, Samia, parabéns. Pena que são longos...” Tentarei ser breve, prometo, mas eu precisava começar aludindo ao fato de que, no comércio da vida comum, as palavras perderam o seu valor. Algumas delas, tão sentidas e tão significativas outrora, viraram pastiche de si mesmas. A que distância estamos, sei lá, de Shakespeare, que as amava tanto que, quando não encontrava uma que expressasse o seu pensamento, criava uma nova. Ah, isso faz lembrar o príncipe Hamlet: lendo o quê, meu príncipe? – Palavras, palavras, palavras... E no entanto é pela realidade a que apontam, e não por si mesmas – meros sons articulados – que as palavras valem. Julieta disse, do alto do balcão: “Uma rosa, se tivesse outro nome, conservaria o mesmo doce perfume...”. Julieta pura, Julieta terna... Terna, sem dúvida. Esta é com efeito uma das valiosas palavras que perderam seu sentido no caminho, e que clama por uma espécie de justiça: ternura.

Esse sentimento, tantas vezes reduzido a algo meloso ou piegas, é na verdade um dos mais complexos e fundamentais para a vida humana. A ternura é uma força discreta, mas decisiva; é uma linguagem que atravessa as idades, une o vigor à fragilidade, e nos ensina a tratar o outro não como objeto de posse, mas como mistério que se confia à nossa guarda. “Ternura” vem do latim tener, e quer dizer delicadeza, suavidade, brandura, inicialmente no sentido físico, quando se refere à carne e à pele, mas logo também no afetivo, quando os gestos e sentimentos são brandos e suaves. A evolução semântica é bonita: daquilo que é materialmente “tenro”, que se dobra facilmente e é sensível ao toque, passou-se ao sentimento humano que se dobra diante do outro – a atitude de afeto, cuidado e gentileza.

A ternura é uma força discreta, mas decisiva; ela nos ensina a tratar o outro não como objeto de posse, mas como mistério que se confia à nossa guarda

Existe, sim, uma ternura fácil: aquela que brota espontânea diante do que é novo, pequeno e vulnerável. Sentimo-la diante de uma criança, cujas confiança e inocência revelam a beleza das coisas intactas, tão distantes da morte. É uma ternura que se manifesta também diante de todos os filhotes e das vidas em germe, nas quais pressentimos algo de sagrado: a promessa da continuidade da vida. Essa ternura natural nos impele a proteger, a cuidar, a dar tempo para que o frágil se fortaleça sob a sombra do nosso cuidado. Há ainda uma ternura silenciosa, que floresce diante da fragilidade dos que já viveram muito. Por séculos, a vulnerabilidade do idoso, do doente e do deficiente foi cercada de reverência, porque nela se reconhecia o reflexo da condição divina do homem. No rosto sofrido e cansado, ensinaram-nos os séculos de civilização cristã, estava oculto o rosto amoroso de Deus.

Mas há uma ternura mais profunda, que ultrapassa o impulso instintivo e se torna uma espécie de arte de presença. É aquela que nos ensina a guardar a justa distância – essa fronteira delicada entre o amor e o respeito, entre o toque e o espaço, entre a intimidade e a liberdade. A ternura é o que nos impede de sufocar o outro em nosso amor; é ela que permite amar sem anular, tocar sem ferir, ver sem devassar. Nas relações amorosas, e no próprio exercício da sexualidade, é a ternura que confere ao gesto físico uma dimensão espiritual: ela nos permite ver o outro em sua nudez sem o despir de sua dignidade, escutar-lhe a confidência sem dela tirar proveito. Onde falta ternura, o amor se degrada em apropriação; onde ela floresce, o desejo se faz cuidado. A paixão, sozinha, consome; a ternura, porém, preserva. O sexo sem ternura – esforço-me por vingar a palavra, revelar-lhe novamente o sentido real – torna-se rude, instrumental, e abre caminho àquilo que a pornografia perpetua: uma sexualidade sem relação, sem rosto, sem alma, que não é mais verdadeira (e aqui se abre o caminho, brutal, tenebroso, degenerado e trágico, que dá na perversão da inocência mais pura – assunto triste e perturbador que passarei por alto).

Dentre todos os perigos silenciosos do mundo digital, deste que malbaratou a palavra, um dos mais graves é o da pornografia – esse consumo invisível e crescente, que muitos tratam como inocente passatempo. A ideia dominante é a de que a pornografia seria uma brincadeira inofensiva, até mesmo uma ferramenta para reavivar o desejo conjugal, ou apoio para a saúde. Mas a verdade é outra: ela é destrutiva para todos – não só para os adultos, mas sobretudo para crianças e adolescentes! –, porque deforma o olhar e dissolve o vínculo entre o corpo e a pessoa. A pornografia ensina a olhar sem ver, a tocar sem sentir, a desejar sem amar. É o anestésico magno da ternura.

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A cultura contemporânea modificou profundamente – deformou – a maneira como entendemos o corpo e o sexo. De expressão da identidade, o corpo passou a ser objeto de posse. Em vez de morada, tornou-se instrumento. Queremos moldá-lo, manipulá-lo, exibi-lo, usá-lo para obter prazer, poder ou atenção. E, justamente por o tratarmos como coisa, exigimos que seja perfeito: sem cheiro, sem falha, sem limite. O corpo real, com suas marcas e fragilidades, tornou-se incômodo. Esquecemos que é nele que a alma se torna visível; que o corpo, mesmo imperfeito, é o espelho mais autêntico do ser.

Logo o mesmo se deu com o sexo. O sexo real nos põe diante da imperfeição, da dependência e do risco de sermos vistos como somos. Ele exige confiança, vulnerabilidade e reciprocidade. Por isso, precisa de um espaço de intimidade – esse território sagrado onde a entrega é protegida e o outro é acolhido. Quando se rompe o vínculo entre corpo, sexo e identidade, o prazer se torna abstrato, solitário. A pornografia floresce nessa terra seca: substitui a relação pelo estímulo, o amor pela excitação, a presença pela fantasia. É o triunfo da solidão mascarada de prazer. Cada novo estímulo promete preencher o vazio, mas apenas o aprofunda.

É nesse ponto que se impõe uma redescoberta dos afetos – não apenas como reações, sentimentos espontâneos, mas como atitudes espirituais cultivadas, isto é, como virtudes. Entre eles, como um irmão gêmeo da ternura, a quem se associa sempre, e tão bem, e como um par de asas, destaca-se uma pequena joia esquecida – ou, melhor dizendo, barateada. Uma palavra selada, malbaratada, que virou resposta semivulgar: “gratidão”. A gratidão – a verdadeira – é o contrário da indiferença, é o sentimento que nos devolve à realidade e à alegria de existir. Ela nos ensina a ver o bem escondido nas pequenas coisas e a reconhecer que nada nos é devido. A gratidão é a resposta madura ao dom – e só quem percebe a vida como dom é verdadeiramente livre.

Compreendendo a ternura e a gratidão estaremos mais próximos de redescobrir o humano, de compreender novamente como é o amor humano verdadeiro

Vivemos, porém, não obstante a proliferação da palavra, uma crise de gratidão! Está aí uma geração que não sabe mais agradecer. A educação moderna, centrada na satisfação imediata dos desejos, ensinou às crianças que basta querer para ter. Os pais, movidos pelo medo de frustrar e de perder o amor dos filhos, tornaram-se reféns de seus desejos. Assim, crescem meninos e meninas que tudo exigem e nada agradecem – e são mais tarde adultos que, perpetuando o hábito, sentem-se no direito de tudo, mas incapazes de... alegria. O resultado é visível: famílias enlouquecidas, relações sem reciprocidade, filhos que recebem sem limite e não aprendem o valor de dar. Porque o dom só se compreende quando não é devido. Quando tudo é “direito”, a gratidão desaparece. E com ela, desaparece também a delicadeza – esse outro nome da ternura.

É preciso reaprendermos a intenção interior que sustenta um gesto simples e luminoso, e que deve ser feito com ternura; é preciso reaprendermos o valor de uma palavra gasta, que exigimos das crianças: “obrigado”. A gratidão é uma forma de lucidez: quem agradece enxerga o bem; quem não agradece o esquece. Aquela passagem do Evangelho, em que Jesus cura dez leprosos, é de uma força perene: apenas um voltou para agradecer. Os outros, talvez gratos em silêncio, estavam apressados demais para reconhecer o dom. A gratidão exige pausa, e a pressa é a sua pior inimiga. Quantas vezes esperamos agradecimentos que nunca vêm, enquanto permanecem vivos em nós os ressentimentos mais antigos! A memória do mal é teimosa; a do bem, volátil. Sabemos recordar uma ofensa com nitidez, mas esquecemos um favor recebido. E, inversamente, lembramo-nos com orgulho das bondades que fizemos, como se o bem praticado nos pertencesse. É o amor-próprio que falseia as proporções, fazendo-nos juízes da generosidade alheia e contadores dos nossos próprios méritos.

O remédio é simples, mas exige humildade: começar a educar a gratidão desde cedo. O primeiro “obrigado” que uma criança aprende a dizer é um ato de civilização. Não brota do instinto, não... É fruto de uma consciência iluminada pela presença do outro. Ao aprender a agradecer, a criança aprende – e descobre – que não está sozinha no mundo. “Obrigado” é uma pequena palavra alegre, sim, mas não só; pode ser também uma oração. O agradecimento diário é a respiração da fé. A cada manhã, dizer “meu Deus, eu vos agradeço as graças recebidas...” é um modo de começar o dia com olhar renovado; e, à noite, reconhecer os benefícios do dia que termina é um exercício de esperança. Assim, mesmo nos dias sombrios, haverá sempre uma pequena luz. A simples consciência de que ainda há amor no lar já é motivo de gratidão. A alegria doméstica nasce desse reconhecimento: saber-se amado e, por isso mesmo, dizer obrigado.

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A gratidão verdadeira, que é uma irmã da humildade, precisa voltar a habitar as relações humanas. Ao fim de cada dia, podemos rever mentalmente tudo o que recebemos: o tempo, o esforço, a paciência, a companhia, o cuidado dos outros. Descobriremos que a soma é imensa – e que pouco ou nada demos em troca. Mas enquanto não tivermos ocasião de retribuir, ao menos sejamos generosos em agradecer. Um “obrigado” sincero, dito com verdade, tem o poder de cicatrizar pequenas feridas e reacender a confiança. É um sorriso em forma de palavra.

É comovente notar que, em tudo o que é bom, verdadeiramente bom, há uma raiz divina. Deus é Pai de bondade, e é por isso o Pai de todas as bondades... Prova-o que a gratidão é mesmo um gesto correto, benéfico, salutar, ver que o próprio Cristo, face de Deus para nós, mostrou-se grato. Antes de entregar-se à Paixão, fez questão de reconhecer o companheirismo de seus apóstolos, e de lhes prometer a paga. “Vós sois os que tendes permanecido comigo nas minhas provações; e eu disponho para vós o Reino, assim como meu Pai dispôs para mim...”, disse. Ele, que tudo deu, e que nada precisava receber, mesmo assim quis agradecer... Que escândalo! Nisso se revela a raiz divina da gratidão: mesmo o doador supremo se faz grato. Agradecer é, portanto, um modo de amar.

É urgente tirarmos o pó de cima das palavras. É urgente também tirarmos, de sobre elas, às vezes a purpurina... Ternura, gratidão. Essas palavras têm de ser, novamente para nós, chaves para compreender essas sérias realidades. Temos de redescobrir esses afetos – não esses sentimentos espontâneos, essas emoções, mas o seu gesto espiritual decidido e cultivado. Compreendendo a ternura e a gratidão estaremos mais próximos de redescobrir o humano, de compreender novamente como é o amor humano verdadeiro, o qual pode ter, se bem vivido, um valor divino.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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