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Poucas coisas me irritam tanto do que ler esse monte de porcaria que falam sobre a Idade Média por aí: castelos escuros e mofados, gente suja, dentes podres, morte para todo lado. Acabei de dar um Google aqui bem rápido e me deparei com um site chamado “Mega Curioso” que me deixou enjoado, não por ver como era nojenta a higiene medieval, mas por ver como a internet está cheia de informações datadas, falsas e descontextualizadas sobre um período milenar tão rico e importante da nossa história.
Estamos falando de Europa aqui: curiosamente, muitas pessoas acham que a Idade Média se resume só à Europa. Mas os hábitos imundos geralmente são só atribuídos aos europeus, e por isso é sobre eles que vamos falar aqui. Exatamente por isso eu resolvi fazer um vídeo completo destruindo esses mitos criados sobre a higiene medieval no meu canal Brasão de Armas, que eu acho que você vai curtir demais.
Bem, a primeira coisa que precisamos tomar cuidado é com o que chamamos de anacronismo: julgar pensamentos e ações do passado com nossos olhos de hoje. Se for esse o caso, nossos olhos não vão achar quase nada de bom em lugar nenhum. Dito isto, não podemos pegar o que consideramos higiene hoje e comparar com o que os europeus consideravam higiene séculos atrás.
Os europeus medievais tinham consciência da importância da higiene em suas vidas, como é possível ver em inúmeras ilustrações e tratados medievais que chegaram até nós
Vamos começar pelo mito mais problemático de todos: o banho. Quantas vezes você já leu ou ouviu falar que europeus só tomavam banho uma vez por ano? De acordo com o professor Paul Newman, em sua renomada obra Daily Life in the Middle Ages (“Vida Cotidiana na Idade Média”), os europeus medievais tinham consciência da importância da higiene em suas vidas, como é possível ver em inúmeras ilustrações (veja a imagem que ilustra esta coluna) e tratados medievais que chegaram até nós, e que estes documentos “fornecem ampla evidência de que os prazeres e benefícios de estar limpo eram muito conhecidos por toda a Europa Medieval”. Prova disso são as casas de banho espalhadas por praticamente toda a Europa, onde não só era possível se lavar como contratar outros “serviços” com as senhoritas que trabalhavam nessas casas.
Mesmo assim, tomar banho não era uma tarefa tão fácil: precisamos lembrar que água encanada e chuveiro são algo bem recente. Essas banheiras de madeira eram enchidas manualmente, no balde mesmo, e a água precisava ser constantemente substituída e reaquecida, o que podia encarecer o serviço. Por isso era comum famílias inteiras entrarem na banheira juntas ou se revezarem na falta de espaço, aproveitando a aguinha quentinha. Por todo esse trabalho e despesa, o professor Newman nos conta que banhos semanais eram mais comuns nessas casas. Portanto, a alternativa mais comum, fácil e barata era ir ao rio mais próximo e tirar a sujeira na água corrente mesmo. Buchas naturais eram usadas para retirar a sujeira mais profunda e, na Baixa Idade Média, até sabonetes já estavam disponíveis: os pretos eram os mais baratos; os brancos, os mais caros.
Só havia um pequeno problema: o senhor inverno! Se você estivesse com o orçamento apertado no inverno, estaria enrolado: imagine a temperatura de um rio europeu no inverno. Os que não congelassem deviam te congelar. Nesse caso, o terrível inverno fazia o banho dos europeus se tornar um pouco impossível. Felizmente, os camponeses trabalhavam bem menos no inverno e se sujavam proporcionalmente menos.
Então, não é como se os europeus não tivessem consciência do que era higiene e vivessem com a cara suja de cocô para cima e para baixo com a maior naturalidade do mundo, como um porquinho num chiqueiro. O clima europeu era severo: eles não tinham esse climinha tropical gostoso que os nossos índios tinham aqui, que fazia qualquer banho em um rio ou cachoeira uma delícia quase o ano todo: o meio ambiente afeta nosso comportamento e molda nossa cultura também.
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Agora, quando o inverno acabava e o acesso às casas de banho ficava mais fácil, a galera fazia a festa mesmo. Só havia um outro pequeno problema nisso aí: os medievais tomavam banhos peladões: mulheres e homens nos mesmos lugares. Aí, imagine: eles ficavam limpos, mas saíam “imundos”. Pode perguntar à Igreja Católica da época que eles vão dizer para você que era isso aí mesmo.
Por causa desse antro vil de “higiene imunda”, líderes religiosos começaram a desincentivar aquele banho pecaminoso, e isso fez com que o mito da sujeira medieval se espalhasse como cheiro podre hoje em dia. Mas isso não significa que essa orientação da Igreja era obedecida – muito pelo contrário! Se hoje as igrejas têm uma dificuldade enorme para fazer os jovens se manterem “puros”, imagine na Idade Média. Então, o banho comunitário continuou rolando solto por lá, assim como outras “coisinhas” mais. E, se isso não for prova suficiente de que os medievais eram higiênicos (do jeito deles), eu não sei mais o que pode ser. Um pouco de contexto é importante antes de ficar julgando a higiene dos outros.
Hoje em dia é fácil, com água encanada e aquecedor a gás, dizer que os europeus eram porcos; quero ver viver lá tomando banho gelado no inverno abaixo de zero. É, eu estou nervoso mesmo! Vou até tomar um banho para esfriar a cabeça agora. Com licença!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos