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Capa de "Ciencia y fe en el padre del Big Bang, Georges Lemaître".
O livro de Dominique Lambert analisa a vida espiritual do padre Lemaître e a maneira como ele promoveu a conciliação entre ciência e fé.| Foto: Reprodução

O Georges Lemaître cientista todos nós já conhecemos até que muito bem, e o mundo também o está descobrindo: pioneiro do Big Bang e um dos primeiros, se não o primeiro, a tentar calcular a velocidade da expansão do universo. Ah, claro, também era padre, mas isso se menciona quase que de passagem, como se fosse um detalhe – importante para nós, que buscamos mostrar que não há conflito entre ciência e fé, mas que mesmo assim não costuma provocar tanta reflexão quanto seus méritos como cientista. Em 2008, Dominique Lambert, professor de Filosofia da Ciência e História da Ciência, quis preencher essa lacuna, analisando a correspondência e os escritos de Lemaître, e escreveu Ciencia y Fe en el padre del Big Bang, Georges Lemaître. Ali descobrimos mais o sacerdote que o cientista, e entendemos melhor uma ironia da vida de Lemaître: o homem que é citado como um dos melhores exemplos da conciliação entre ciência e fé lutou arduamente para manter separadas essas duas esferas ao longo de sua vida.

Lambert vai ignorar quase que completamente a pesquisa científica e o trabalho que levou Lemaître a vislumbrar o Big Bang; o que lhe interessa é principalmente a caminhada espiritual do belga, desde a sua juventude, passando pela experiência da Primeira Guerra Mundial e pelos anos de seminarista, as suas influências (como Leon Bloy e Jan van Ruysbroeck) e amizades, e como sua fé alimentou a curiosidade sobre o início do universo. Lambert cita um manuscrito de 1921, o primeiro ano de Lemaître no seminário, para mostrar que o futuro sacerdote teve um ponto de partida bastante heterodoxo; suas primeiras reflexões resvalavam (isso quando não flertavam abertamente) no “concordismo”, uma harmonização forçada entre a Bíblia e os dados da ciência, por exemplo “caçando” conceitos científicos modernos nos relatos da Escritura. Tomando a luz como a primeira realidade criada, Lemaître deriva daí sua interpretação peculiar de outras partes do relato da criação: as “águas”, por exemplo, seriam uma referência a um “conjunto de luzes” que “se cruza em todos os sentidos e forma uma espécie de fluido sem limite, sem contorno diferenciado”. Felizmente ele abandonaria essa exegese à medida que amadureceu e avançou em suas pesquisas.

Lemaître protegeu a fé do reducionismo científico e protegeu a ciência da apropriação apologética, sem contradizer sua convicção mais profunda de que essas duas esferas são meios de buscar a única verdade

O livro ainda mostra que o fato de ser um cientista notável e dedicado não fez de Lemaître um sacerdote desleixado. Ainda seminarista, ele ingressou na Fraternidade Sacerdotal dos Amigos de Jesus, iniciativa do cardeal Mercier, primaz da Bélgica, para fomentar a vida espiritual dos padres, com ênfase especial na oração e na contemplação. Apesar de seus inúmeros compromissos profissionais, Lemaître participou ativamente das atividades dos Amigos de Jesus e não descuidou jamais dos compromissos espirituais. Segundo Lambert, a fraternidade era também um “respiro”, um ambiente no qual Lemaître podia ser plenamente católico, sem medo dos olhares tortos que a comunidade acadêmica e científica de sua época dirigia a qualquer coisa que cheirasse a religião.

E é este preconceito, comum em seu tempo e ainda hoje, que ajuda a entender por que Lemaître se esforçou tanto em manter ciência e fé separadas ao longo de sua carreira. Mesmo abandonando o “concordismo” de sua juventude, o padre-cientista sabia que a religião e a ciência não estavam em choque, mas nunca fez questão de se pronunciar abertamente sobre isso ou enfatizar esse aspecto, a não ser quando era perguntado. A união entre essas duas esferas estava na própria pessoa de Lemaître, e não em sua carreira. Lambert mostra como o fato de ser um padre a propor a teoria do “átomo primordial” levou muita gente a enxergá-la como uma tentativa de legitimar cientificamente o conceito da criação divina – na melhor das hipóteses, uma hipótese que teria consequências metafísicas; na pior delas, uma teoria criada apenas com o objetivo de fazer avançar uma agenda teísta. O próprio Albert Einstein era um dos que tinham o pé atrás. Quando, no início dos anos 30, depois de ouvir pela primeira vez Lemaître expor sua hipótese, Einstein retrucou que “essa é a mais bela a satisfatória explicação da criação que já ouvi”, o grande físico não estava endossando a teoria; ele a estava ironizando, apertando o calo onde mais doía.

Lemaître teve de brigar muito para mostrar que sua hipótese era sólida do ponto de vista puramente científico, mas também que ela não tinha relação nenhuma com o conceito teológico e bíblico da criação. Esse esforço exigiu um ataque em duas frentes. Para convencer cientistas antirreligiosos de que o Big Bang não era nenhum cavalo de Troia para colocar Deus no papel de “agente zero” do início do universo, ele insistia na ideia do “Deus oculto” (mas nunca ausente) do profeta Isaías e afirmava que sua hipótese “deixa o materialista livre para negar todo ser transcendente”. Para refrear o ânimo de muitos cristãos empolgados com implicações metafísicas do “átomo primordial”, insistiu que seus estudos tratavam apenas do início material do universo e que o relato bíblico atua em outra dimensão – neste processo, como bem sabemos, bateu de frente (de forma reservada, jamais pública) até mesmo com o papa Pio XII, que, por mais que tivesse toda a boa intenção do mundo, acabou misturando as duas coisas em um discurso de 1951 à Pontifícia Academia de Ciências, criando uma confusão que Lemaître teve de trabalhar para desfazer.

Aliás, é sintomático que o Big Bang não tenha sido a única teoria científica a sofrer com aqueles que desejavam tirar dela conclusões metafísicas. Lambert mostra como o paradigma mais popular à época de Lemaître, o do universo estático, era abraçado por materialistas menos por seu mérito científico e mais por “dispensar” a necessidade de um criador; e ainda cita o caso de Jean-Claude Pecker (falecido uma semana atrás), que afirmou explicitamente ter desenvolvido sua abordagem sobre a teoria da “luz cansada” – uma explicação alternativa para o fenômeno conhecido como “desvio para o vermelho”, considerado uma evidência do afastamento das galáxias causado pela expansão do universo – por motivos puramente filosóficos, pois, sendo ateu, queria oferecer uma explicação alternativa ao que estava sendo visto como uma “confirmação” da criação.

Conhecendo melhor o ambiente intelectual no qual Lemaître estava se movendo e tentando promover sua teoria, não surpreende nem um pouco que o sacerdote tivesse se empenhado em manter ciência e fé como compartimentos separados. Ao fazer isso, diz Lambert, ele protegeu a fé do reducionismo científico e protegeu a ciência da apropriação apologética, sem contradizer sua convicção mais profunda de que essas duas esferas são meios de buscar a única verdade. Como afirma o próprio Lemaître, “o pesquisador cristão avança livremente, com a segurança de que em sua pesquisa não pode surgir nenhum conflito real com sua fé. Talvez até mesmo ele tenha uma certa vantagem sobre o colega não crente. Ambos se esforçam para decifrar a intrincada multiplicidade do palimpsesto da natureza, onde estão superpostos e confundidos os traços das diversas etapas da longa evolução do mundo. Talvez o crente tenha a vantagem de saber que o enigma tem solução, que a mensagem subjacente e, no fim das contas, a obra de um ser inteligente, e que, portanto, o problema colocado diante dele pela natureza está lá para ser resolvido, e que sua dificuldade é, sem dúvida, proporcional à capacidade presente ou futura da humanidade”.

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