Ouça este conteúdo
No fim da segunda conferência nacional da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2), em 2018, no Recife, ficou acertado que o evento seguinte ocorreria aqui em Curitiba. Estava marcado para 2020, não teve como ser realizado naquele ano pelas razões que todos conhecemos, mas de 2022 não passa. No entanto, a organização do evento teve uma surpresa desagradável dias atrás, quando o Museu Oscar Niemeyer subitamente fechou as portas à ABC2 depois que as negociações já estavam bem adiantadas.
O Tubo de Ensaio teve acesso a uma parte dos e-mails trocados entre a ABC2 e o MON. O primeiro contato ocorreu no fim de abril, e tudo estava correndo extremamente bem, a ponto de o contrato estar em vias de ser assinado. No início de julho, a ABC2 enviou uma mensagem já perguntando sobre questões bem práticas, como rede wi-fi, possibilidade de acesso dos participantes da conferência às salas de exposição do museu, e sinalização indicando entrada para o evento. Mas, depois de algumas semanas de silêncio, em 25 de julho o museu respondeu dizendo que, “conforme o estatuto, não podemos realizar eventos de cunho político e religioso. Ficamos à disposição para futuras tratativas para eventos corporativos e culturais” – o MON, precisamos lembrar, é patrimônio do governo estadual paranaense.
A conferência da ABC2 é um evento tão “religioso” quanto o seria uma exposição de arte sacra dentro do museu
Katharina Beletti, da área de Eventos do MON, afirmou que, com a retomada forte dos eventos nesse pós-pandemia, o museu está refinando seus critérios. Ela acrescentou, ainda, que está havendo uma cautela adicional da parte do museu devido ao período eleitoral (apesar de a conferência estar prevista para ocorrer depois do segundo turno) e que havia uma preocupação com a possibilidade de haver momentos de culto ou pregação religiosa – uma preocupação legítima, mas que, de acordo com a ABC2, já havia sido discutida, com a garantia de que não haveria nada desse teor no evento. De qualquer maneira, Beletti ainda disse que o museu pode reconsiderar a decisão caso conclua que realmente não se trata de evento religioso, mas acadêmico ou corporativo.
Eu não ficaria surpreso caso alguém lá dentro tenha mandado botar o pé no freio só de ver a palavra “Cristãos” no nome do evento ou da entidade promotora, alegando a separação entre igreja e Estado, o artigo 19 da Constituição etc. É a visão mais comum, embora também a mais preguiçosa, a respeito da laicidade do Estado brasileiro. Se este caso for, como me parece que seja, mais de desconhecimento que de preconceito, meus colegas das Crônicas de um Estado laico certamente poderiam dar uma ajudinha à equipe do museu para compreender a real natureza do modelo brasileiro de laicidade. O fato é que a ABC2 não está ligada a nenhuma denominação cristã específica, nem é uma entidade destinada a proselitismo religioso, mas ao fomento de um diálogo frutífero entre fé e ciência dentro do âmbito do cristianismo, especialmente evangélico; basta ver a descrição que está no site da instituição. Tampouco sua conferência nacional pode ser classificada como um “evento religioso”; é um evento de discussão quase acadêmica sobre ciência e religião, aberto a todos os interessados, independentemente de fé religiosa. Sua realização em um espaço administrado pelo poder público não privilegia nenhuma igreja nem viola a vedação constitucional à “subvenção” de cultos religiosos ou igrejas prevista no artigo 19, I da Carta Magna – pelo contrário, fomentar um bom entendimento da ciência por parte da comunidade religiosa é exatamente o tipo de “colaboração de interesse público” que justificaria a cooperação entre igreja e Estado. Em resumo, a conferência é um evento tão “religioso” quanto o seria uma exposição de arte sacra dentro do museu.
VEJA TAMBÉM:
Não é a primeira vez
Antes que a ABC2 existisse, o pessoal que viria a criá-la já tinha passado por um episódio semelhante em 2014, quando conseguiu trazer para o Brasil uma versão mais curtinha dos sensacionais cursos oferecidos pelo Instituto Faraday, da Universidade de Cambridge. A Escola Politécnica da Universidade de São Paulo deveria receber o evento, estava tudo certo, devidamente anunciado, mas recuou lá pelos 40 do segundo tempo alegando tanto uma inventada ofensa à laicidade estatal (a USP é estadual) quanto conflitos de calendário – o estrago só não foi maior porque àquela altura os organizadores do curso, percebendo a demora para receber uma resposta definitiva da Poli, já tinham transferido tudo para o Mackenzie.
Se algo serve de consolo, é que ainda não chegamos ao nível dos mexicanos, um caso paradoxal de país profundamente religioso, mas com um ordenamento jurídico totalmente hostil à religião. Em 2011, a Universidade Nacional Autônoma do México deveria sediar o VI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, com a Universidade de Oxford envolvida na organização, mas uma revolta de professores, que incluiu de manifestos até ameaças veladas de agressão física aos participantes do evento, forçou uma mudança de última hora para a Universidade Panamericana. Mas, convenhamos, é um consolo bem mínimo, já que nosso modelo de laicidade é muito mais avançado que o mexicano, e mesmo assim ainda há tanta gente que não o compreende (ou não quer compreendê-lo – são coisas diferentes) bem...