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Tubo de Ensaio

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Ciência, religião e as pontes que se pode construir entre elas

“São” Carl Sagan

Cientificismo como religião

Makenzie Lystrup faz o juramento de posse como diretora do Goddard Space Flight Center colocando a mão sobre um livro de Carl Sagan. (Foto: Keegan Barber/Nasa)

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A foto que abre esta coluna viralizou nos últimos dias. Mostra a posse de Makenzie Lystrup como diretora do Goddard Space Flight Center, uma das unidades da Nasa, em 6 de abril – ela é a primeira mulher a ocupar o posto. A imagem ganhou destaque por causa de um detalhe: o livro que ela escolheu para a hora do juramento. Trata-se de Pálido Ponto Azul: Uma visão do futuro da humanidade no espaço, de Carl Sagan, publicado em 1994. Normalmente, esse tipo de juramento é feito colocando-se a mão sobre a Bíblia, outro livro sagrado (dependendo da fé da pessoa) ou algum texto com valor “cívico”, como a Constituição dos Estados Unidos; que se tenha notícia, é a primeira vez que usam uma obra de Carl Sagan.

Eu tenho lá minhas dúvidas sobre o que o próprio Sagan acharia disso. Não de ser homenageado – aliás, acho até que ele foi bastante injustiçado em vida, muito por inveja da própria comunidade científica devido ao enorme sucesso que ele conquistou como divulgador da ciência –, mas desta homenagem específica, que o coloca num nível, digamos, “religioso”. Lystrup explicou a homenagem ao site Futurism.com em termos até bem simples, falando de como a série Cosmos serviu para despertar sua paixão pela astronomia (e ela está longe de ser a única, obviamente) e da importância de Sagan como alguém que se esforçou para tornar a ciência acessível ao público. Ela não fez propaganda ateísta nem colocou Sagan ou a ciência como substitutos da religião, embora o ato específico do juramento de posse acabe dando essa conotação, intencional ou não.

O cientificismo, no mínimo, é uma postura filosófica (uma contradição insanável, já que ele postula o desprezo por qualquer conhecimento não comprovável ou mensurável), e no máximo se torna também uma fé

Acontece que, assim como no passado o positivismo acabou se tornando religião organizada, com templo e tudo, o cientificismo está trilhando o mesmo caminho: no mínimo, é uma postura filosófica (e, sendo filosofia, acaba caindo numa contradição insanável, já que postula o desprezo por qualquer conhecimento não comprovável ou mensurável), e no máximo se torna também uma fé. Aliás, se o leitor não quiser acreditar em mim, pode acreditar em Greg Graffin, vocalista do Bad Religion e compositor das canções da banda, que em uma troca de mensagens com um professor de uma faculdade confessional cristã, definiu o “naturalismo” (é assim que ele se define: não ateu, mas “naturalista”) como “uma religião jovem e nova”. “O naturalismo que eu e muitos cientistas que entrevistei e com os quais aprendi defendemos é simplesmente a crença de que a verdade vem da pesquisa empírica do universo”, afirma ele – reparem no uso do termo “crença” –, acrescentando que a ideia de que “a verdade é algo maior que nossas pesquisas naturalistas” não passa de mito.

Quando perguntei a Marcelo Gleiser se era preciso ter fé para dizer que Deus não existe, ele respondeu que, já que “a ciência não consegue ‘desprovar’ a existência de algo”, então “podemos, sim, ver em afirmações como ‘Deus não existe’ um ato de fé, pois não há nenhuma evidência que apoie essa convicção. O que é fé, de uma certa forma? Você tem evidências, mas não são, digamos, evidências científicas”. Mas essa não é a única fé dos cientificistas (ou dos naturalistas, chame como quiser): como bem aponta Preston Jones, o interlocutor de Graffin, eles ainda creem que a maioria das pessoas está enganada sobre questões fundamentais da existência humana, bem como acreditam que não há propósito nenhum na vida ou no universo. E têm a esperança de que um dia a ciência há de explicar tudo. Fé e esperança, como qualquer cristão sabe, são duas das chamadas “virtudes teologais” (a terceira é a caridade).

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E, como qualquer religião, a religião do cientificismo tem seus sacerdotes e santos, alguns que se esforçam para sê-lo, e outros que jamais tiveram essa pretensão, mas são canonizados mesmo assim. Carl Sagan é um deles, sem dúvida, como o são Richard Dawkins, Sam Harris, Jerry Coyne e Neil DeGrasse Tyson. A transcendência é substituída pela experiência do deslumbramento diante da grandeza do universo, como mostra o famoso vídeo Science saved my soul, analisado pelo Rogério Fernandes em sua tese de doutorado. Não que os religiosos não sejam capazes desse mesmo deslumbramento, mas para o religioso ele é meio, não um fim em si mesmo como para o cientificista. Pode ser que os cientificistas não imitem os positivistas construindo templos, mas não vou ficar surpreso se coisas como esse juramento sobre um livro de Carl Sagan se tornarem mais e mais frequentes.

Não esqueça de marcar na sua agenda

Maio está quase aí, e com ele o 4.º Congresso Internacional de Saúde e Espiritualidade, do Nupes, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Ainda há preços especiais para inscrição antecipada, mas no fim de abril o lote promocional termina. O que também está acabando é o prazo para quem quiser apresentar papers no XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, que ocorre em setembro em Salta, na Argentina. O site oficial foi lançado recentemente e tem todas as informações sobre o evento. Por fim, em outubro, a Sociedade Brasileira de Cientistas Católicos fará seu terceiro congresso, aqui na PUCPR. Já temos inscrições abertas e o prazo para envio de papers também já começou.

Esteja entre os primeiros a garantir o livro de entrevistas do Tubo de Ensaio

No começo de maio sai da gráfica A razão diante do mistério da existência, livro que reúne quase 30 entrevistas que fiz para o Tubo de Ensaio ao longo dos quase 15 anos de blog e coluna. A pré-venda continua, quem garantir agora o livro estará entre os primeiros a recebê-lo. Se Deus quiser, teremos alguns eventos de lançamento, mas ainda não há nada certo.

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