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Na segunda-feira, dia 8, a Igreja Católica celebra os 60 anos do encerramento do Concílio Vaticano II, um dos principais acontecimentos da vida católica nas últimas décadas – ainda que seja exagerada, e até perigosa, a ideia de que tenha se tratado de uma espécie de “refundação” da Igreja; já tratei disso no espaço semanal que mantenho na Gazeta sobre assuntos católicos. Aqui, interessa-me recordar o que o concílio disse sobre ciência. Não é muita coisa, diante de todo o universo de assuntos de que os bispos trataram entre 1962 e 1965, mas vale a pena recordar o pouco que há.
Começamos por um documento que também está fazendo 60 anos: a constituição pastoral Gaudium et Spes, “sobre a Igreja no mundo atual”, promulgada em 7 de dezembro de 1965. Ela começa tratando do lugar proeminente que a ciência assumiu na modernidade:
“A atual perturbação dos espíritos e a mudança das condições de vida estão ligadas a uma transformação mais ampla, a qual tende a dar o predomínio, na formação do espírito, às ciências matemáticas e naturais, e, no plano da ação, às técnicas, fruto dessas ciências. Esta mentalidade científica modela a cultura e os modos de pensar duma maneira diferente do que no passado. A técnica progrediu tanto que transforma a face da terra e tenta já dominar o espaço.
Também sobre o tempo estende a inteligência humana o seu domínio: quanto ao passado, graças ao conhecimento histórico; relativamente ao futuro, com a prospectiva e a planificação. Os progressos das ciências biológicas, psicológicas e sociais não só ajudam o homem a conhecer-se melhor, mas ainda lhe permitem exercer, por meios técnicos, uma influência direta na vida das sociedades. Ao mesmo tempo, a humanidade preocupa-se cada vez mais com prever e ordenar o seu aumento demográfico.” (n. 5)
“Quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são.”
Concílio Vaticano II, constituição Gaudium et Spes.
Perceba-se aí uma sutil referência à ideia da ciência e da técnica como novas guias da sociedade e a menção à questão demográfica, que essa mesma técnica prometia “resolver” nos anos 60. Mas logo depois os padres conciliares já lembram que nem a ciência nem a técnica oferecem todas as respostas:
“Participando da luz da inteligência divina, com razão pensa o homem que supera, pela inteligência, o universo. Exercitando incansavelmente, no decurso dos séculos, o próprio engenho, conseguiu ele grandes progressos nas ciências empíricas, nas técnicas e nas artes liberais. Nos nossos dias, alcançou notáveis sucessos, sobretudo na investigação e conquista do mundo material. Mas buscou sempre, e encontrou, uma verdade mais profunda. Porque a inteligência não se limita ao domínio dos fenômenos; embora, em consequência do pecado, esteja parcialmente obscurecida e debilitada, ela é capaz de atingir com certeza a realidade inteligível.” (n. 15)
Embora o Novo Ateísmo seja um fenômeno recente, deste século, o positivismo cientificista e a tese do conflito entre ciência e fé datam do fim do século 19. Os padres conciliares, quando se referem ao ateísmo, estão conscientes de que “muitos, ultrapassando indevidamente os limites das ciências positivas, ou pretendem explicar todas as coisas só com os recursos da ciência, ou, pelo contrário, já não admitem nenhuma verdade absoluta” (n. 19). Mas, um pouco mais adiante, eles oferecerão um ótimo resumo da verdadeira relação entre ciência e fé, pedindo o respeito à autonomia da ciência, condenando fundamentalismos que levaram muita gente a acreditar no conflito entre ciência e religião, e afirmando que, quando feita com critério, a investigação científica jamais será oposta à fé. A citação é longa, mas importante:
“(...) muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a íntima ligação entre a atividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do próprio fato da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte. Por esta razão, a investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus. Antes, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são. Seja permitido, por isso, deplorar certas atitudes de espírito que não faltaram entre os mesmos cristãos, por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia da ciência e que, pelas disputas e controvérsias a que deram origem, levaram muitos espíritos a pensar que a fé e a ciência eram incompatíveis. Se, porém, com as palavras ‘autonomia das realidades temporais’ se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais assertos. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste. De resto, todos os crentes, de qualquer religião, sempre souberam ouvir a sua voz e manifestação na linguagem das criaturas. Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece.” (n. 36)
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Este tema será retomado mais adiante:
“(...) dedicando-se às várias disciplinas da história, filosofia, ciências matemáticas e naturais, e cultivando as artes, pode o homem ajudar muito a família humana a elevar-se a concepções mais sublimes da verdade, do bem e da beleza e a um juízo de valor universal, e ser assim luminosamente esclarecida por aquela admirável sabedoria, que desde a eternidade estava junto de Deus, dispondo com Ele todas as coisas, e encontrando as suas delícias em estar com os filhos dos homens.
(...) O progresso hodierno das ciências e das técnicas que, em virtude do seu próprio método, não penetram até às causas últimas das coisas, pode sem dúvida dar azo a certo fenomenismo e agnosticismo, sempre que o método de investigação de que usam estas disciplinas se arvora indevidamente em norma suprema de toda a investigação da verdade. É mesmo de temer que o homem, fiando-se demasiadamente nas descobertas atuais, julgue que se basta a si mesmo e já não procure coisas mais altas.
Estas deploráveis manifestações não são, porém, consequências necessárias da cultura atual, nem nos devem fazer cair na tentação de desconhecer os seus valores positivos. Tais são, entre outros: o gosto das ciências e a exata objetividade nas investigações científicas; a necessidade de colaborar com os outros nas equipes técnicas; o sentido de solidariedade internacional; a consciência cada vez mais nítida da responsabilidade que os sábios têm de ajudar e até de proteger os homens; a vontade de tornar as condições de vida melhores para todos e especialmente para aqueles que sofrem da privação de responsabilidade ou de pobreza cultural. Tudo isto pode constituir uma certa preparação para a recepção da mensagem evangélica, preparação que pode ser informada com a caridade divina por Aquele que veio para salvar o mundo.” (n. 57)
Do meio para o fim do documento, na seção sobre “deveres mais urgentes dos cristãos em relação à cultura”, os bispos pedem aos católicos que trabalhem por um diálogo frutífero entre ciência e fé:
“Vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura. Saibam conciliar os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e últimas descobertas com os costumes e doutrina cristã, a fim de que a prática religiosa e a retidão moral acompanhem neles o conhecimento científico e o progresso técnico e sejam capazes de apreciar e interpretar todas as coisas com autêntico sentido cristão.” (n. 62)
“Dedicando-se às várias disciplinas da história, filosofia, ciências matemáticas e naturais, e cultivando as artes, pode o homem ajudar muito a família humana a elevar-se a concepções mais sublimes da verdade, do bem e da beleza.”
Concílio Vaticano II, constituição Gaudium et Spes.
Os padres conciliares já tinham feito pedido parecido em outro documento aprovado semanas antes, o decreto Apostolicam actuositatem, “sobre o apostolado dos leigos”, de 18 de novembro de 1965, e que começa dizendo que “o progresso da ciência e da técnica” e outras mudanças na sociedade “não só dilataram imenso os campos do apostolado dos leigos, em grande parte acessíveis só a eles, mas também suscitaram novos problemas que reclamam a sua atenção interessada e o seu esforço” (n. 1) – um desses problemas é a “idolatria das coisas materiais”, baseada em uma confiança excessiva “no progresso das ciências naturais e da técnica” (n. 7). A ciência, portanto, também é campo de apostolado para os leigos católicos.
E a escola católica é o campo ideal para que os cristãos se preparem, de modo que possam fazer esse apostolado com ainda mais eficiência. No decreto Gravissimum educationis, “sobre a educação cristã”, aprovado em outubro de 1965, o Concílio Vaticano II pede que os professores das escolas católicas sejam “preparados com particular solicitude, para que estejam munidos de ciência quer profana quer religiosa, comprovada pelos respectivos títulos, e possuam a arte de educar, de harmonia com o progresso dos nossos dias” (n. 8). Os padres ainda destacam o papel do ensino superior:
“Visto que as ciências progridem sobretudo mercê de investigações especiais de maior alcance científico, favoreçam-se o mais possível nas universidades e faculdades católicas aqueles institutos cujo fim primário é a promoção da investigação científica. O sagrado Concílio muito recomenda que se fundem universidades e faculdades católicas, convenientemente distribuídas pelas diversas partes da terra, de tal maneira, porém, que brilhem não pelo número, mas pela dedicação à ciência.” (n. 10)
Seis décadas depois, nenhum desses trechos perdeu sua atualidade. A Igreja continua vendo com esperança os avanços científicos, embora siga alerta sobre o mau uso da técnica, e insiste que a ciência é um campo onde os cristãos precisam estar presentes, dando exemplo e mostrando que o conhecimento da criação é uma maneira de chegar ao Criador.








