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Em breve, um grupo de católicos irá ao Vaticano para entregar ao papa Francisco um pedido que, acredito eu, deve agradá-lo imensamente: a instituição de uma festa litúrgica dedicada à criação no calendário litúrgico. A iniciativa não se limita à Igreja Católica: é resultado de conversas com protestantes – especialmente a Comunhão Anglicana – e com ortodoxos; se a ideia for adiante, provavelmente todos celebrarão na mesma data, que felizmente não será 22 de outubro (o dia em que o mundo foi criado, na antiga conta do arcebispo anglicano James Ussher), nem 22 de abril (o “Dia da Terra” secular), mas 1.º de setembro, ou o primeiro domingo desse mês. Isso porque a data já vem sendo celebrada anualmente pelos cristãos como o início do Tempo da Criação, que vai até 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis. Em 2015, o papa Francisco já declarou o 1.º de setembro como Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, mas sem status de celebração litúrgica.
Não sei a quantas anda a ideia de uma festa litúrgica da criação entre os anglicanos e os ortodoxos; entre os católicos, ela está sendo tocada especialmente pelo Movimento Laudato Si’, pelo Instituto de Pesquisa Laudato Si’ (da Universidade de Oxford), pela União Internacional das Superioras Gerais (UISG) e pela União dos Superiores Gerais (USG), que redigiram um memorando destinado a organizações católicas e ainda estão recolhendo assinaturas para a carta que será entregue ao papa – o prazo é 1.º de dezembro. Um encontro ecumênico realizado em março deste ano para discutir o tema teve a participação do cardeal Victor Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, que discursou no evento; e do monsenhor Krzysztof Marcjanowicz, subsecretário do Dicastério para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, o departamento do Vaticano responsável por questões litúrgicas.
No memorando, os responsáveis pela proposta dão dez argumentos para que se estabeleça uma festa litúrgica da criação, e os que mais me convenceram são o quarto e o quinto. A nova festa, dizem eles, “eleva a noção de Deus Trino como Criador, muitas vezes ofuscada pela ênfase excessiva na Redenção (como sinalizou Bento XVI)”, e aqui na coluna vocês já leram algumas vezes sobre o pedido, feito pelo papa quando ainda era cardeal Ratzinger, por uma nova “teologia da criação” como “uma das prioridades da teologia atual”, capaz de se contrapor ao “profundo desespero atual da humanidade, um desespero que se esconde por trás de uma fachada oficial de otimismo”. E eu também nunca havia reparado que a criação é o único dogma do Credo Niceno-Constantinopolitano (presente em “criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis” e “por quem todas as coisas foram feitas”) que ainda não tem uma festa correspondente.
A festa litúrgica da criação não é uma celebração da natureza, mas a exaltação do poder e do amor divino que trazem todas as coisas à existência
Algo que me agrada muito na ideia é que seus promotores fazem questão de dissipar uma confusão possível em muitos idiomas, inclusive o português, em que a palavra “criação” pode significar tanto o ato criador quanto o resultado desse ato. Eles afirmam taxativamente que se trata de celebrar o ato divino de criar o universo – em italiano, creazione, em oposição ao creato, que são as “coisas criadas”. Não é, portanto, uma celebração da natureza, mas a exaltação do poder e do amor divino que trazem todas as coisas à existência.
Apesar do prazo de 1.º de dezembro para o recolhimento de assinaturas, ainda não há data certa para que o pontífice receba o pedido. Quando isso acontecer, uma certa burocracia será disparada, especialmente no Dicastério para o Culto Divino. Pensando nisso, os idealizadores da solicitação já se adiantaram e prepararam um outro documento, sugerindo as leituras – incluindo, obviamente, o primeiro capítulo do Gênesis e o início do Evangelho de São João –, as duas possíveis datas e três ideias de títulos para a festa litúrgica da criação, com seus prós e contras; eu, particularmente, fico com o meio-termo, “festa da criação do céu e da terra”, que não é tão longo e indica que se está comemorando o ato criador divino, e não as coisas criadas. No resumo do encontro de março figuram também outros possíveis nomes, dos quais o meu favorito é “festa do Deus Criador”, como temos as festas de Cristo Rei e do Cristo Sacerdote. Poderia até ter o nome oficial de “festa de Deus Pai, Criador do céu e da terra”, simplificada popularmente como fazemos com Cristo Rei, que oficialmente é a Solenidade de Cristo Rei do Universo.
Se o objetivo fosse simplesmente uma versão cristianizada de uma comemoração da natureza, eu diria que uma festa litúrgica seria demais. Mas recordar que Deus é o criador de tudo o que há é diferente. Uma das chaves para o engajamento dos cristãos na questão ambiental é justamente reforçar que o mundo é bom, é obra desejada pelo Criador, que a confiou ao ser humano, encarregado de cuidar do jardim, e não de sugá-lo. A voz dos cristãos tem de ser o ponto de equilíbrio entre a devastação inconsequente e o que eu já chamei de “ambientalismo bocó”, aquele que defende a tartaruguinha enquanto chama o ser humano de “praga” e advoga por controle populacional e outras besteiras.
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Conferência da ABC2 aponta para discussões mais maduras sobre ciência e fé entre evangélicos
Entre 14 e 16 de novembro, estive na quarta Conferência Nacional da Associação Brasileira dos Cristãos na Ciência, o maior encontro de “crentes nerds”, ou “nerds crentes”, do Brasil – e isso quem diz não sou eu, mas o Gustavo Assi, que foi eleito o novo presidente da entidade. Desta vez não houve convidados estrangeiros; a organização achou que era hora de valorizar as “pratas da casa” e, de fato, Assi, Lis Soboll, Igor Miguel e Jonathan Simões Freitas deram conta do recado. Também tivemos alguns painéis com vários convidados e a participação do podcaster Rodrigo Bibo, que gravou dois episódios do seu BTCast – eu participei de um deles, sobre ecoteologia. Ao longo do evento, a ABC2 anunciou várias iniciativas interessantes, que iremos divulgando com calma ao longo das próximas colunas.
Nesta quarta conferência, que marca oito anos desde a fundação da ABC2, percebemos algo interessante. No primeiro dia, Bibo afirmou que as principais dúvidas sobre fé e ciência que chegam a seu podcast têm a ver com as questões de origens – Big Bang, Teoria da Evolução, criacionismo, Design Inteligente, enfim, os suspeitos de sempre. Mas, no último dia, uma sondagem com os participantes da conferência detectou que as prioridades entre esse público são outras, mais ligadas à presença do cristão no meio acadêmico/científico. As questões sobre origens ficaram na metade de baixo da tabela, indicando que, ao menos entre quem já está há mais tempo em contato com a ABC2, essas controvérsias já foram pacificadas e agora é tempo de buscar águas mais profundas, para citar uma analogia usada por Assi em sua palestra sobre teologia da ciência.
Sendo um raro católico (achei que fosse o único, mas havia outro; até agora não descobri quem era) no meio de umas poucas centenas de evangélicos, fiquei felicíssimo ao ver tanta convergência de objetivos: são pessoas das mais diversas denominações, mas unidas na fé cristã e no amor pela ciência, que passaram três dias pensando em como transformar em realidade aquilo que São Josemaría Escrivá pede em Caminho: “Deus quer um punhado de homens ‘seus’ em cada atividade humana”. A ABC2 adota como lema o Salmo 110(111),2: “Grandes são as obras do Senhor, dignas de estudo para quem as ama” (é a tradução da Bíblia de Jerusalém), mas esses dias também me trouxeram à cabeça outro salmo, o 133(134),1: “como é bom, como é agradável para irmãos unidos viverem juntos”.