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O jesuíta argentino José Gabriel Funes foi um dos principais palestrantes do XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, em Salta, no norte da Argentina. Astrônomo de formação, foi diretor do Observatório Vaticano entre 2006 e 2015, e agora está de volta a sua Córdoba natal, onde leciona na Universidade Católica da cidade. Durante a passagem do padre Funes pelo Observatório Vaticano, a entidade organizou conferências sobre “astroteologia”, as implicações teológicas de uma eventual descoberta de vida inteligente fora da Terra. E, mais recentemente, ele lançou um livro, do qual foi editor e para o qual escreveu um capítulo.
Entretanto, no congresso em Salta, cujo tema era “Fim – e finalidade? – do universo”, Funes deixou os ETs de lado por um tempo para expor o que há de mais atual em termos de conhecimento astronômico sobre a forma como nosso mundo físico deve acabar. Durante um intervalo do evento, conversamos tanto sobre esse fim do universo quanto sobre a possibilidade de vida inteligente fora daqui. Enquanto caminhávamos de volta para a sala de conferências, perguntei se ele já havia lido a Trilogia Cósmica de C.S. Lewis, pois havia uma ideia em Perelandra que se assemelhava muito a uma de suas ideias. “Está na minha lista, mas ainda não o li. Acho que passo muito tempo vendo futebol”, respondeu.
Acaba de sair um livro sobre a busca por vida extraterrestre, com edição e um capítulo de sua autoria. Por que esse assunto fascina tanto as pessoas?
A verdade é que não sei bem. O que posso, sim, dizer é que esse tema já era motivo de debate entre os filósofos gregos: havia os que consideravam a Terra como o único mundo, e os que falavam de vários mundos. Santo Alberto Magno, em um de seus textos, diz – não me recordo a citação exata – que “é digno estudar a vida no universo”. Em 1870, o padre Angelo Secchi, jesuíta e astrônomo italiano, um dos primeiros (se não o primeiro) a fazer a classificação espectral das estrelas, dizia que, assim como havia a Terra, podia haver outros mundos onde existissem seres inteligentes, e que eles também seriam criaturas de Deus. E a ficção científica, especialmente no cinema, sempre nos fez pensar sobre essa possibilidade.
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No fim das contas, as perguntas de fundo são: estamos sozinhos? E quem somos? Porque, para podermos procurar seres semelhantes a nós, temos de entender primeiro quem somos, qual é nossa natureza, o que é a vida, o que significa ser uma espécie inteligente, um ser social capaz de criar uma civilização, de desenvolver tecnologia. O desafio é dizer algo sobre o tema a partir de perspectivas diferentes – porque ele diz respeito à astronomia, à biologia e às humanidades como a filosofia e a teologia – sem parecer uma conversa de bar, nem com teorias da conspiração, sem poder diferenciar a ciência estabelecida daquilo que é ficção científica. Os autores do livro assumiram a tarefa de tratar do assunto de uma forma séria, científica e acessível, para que chegue ao público geral, não apenas o leitor especializado em astronomia ou biologia. Neste sentido, é um livro interdisciplinar.
E o que é ciência consolidada, e o que é especulação ou conjectura?
Ainda sabemos muito pouco. Mas sabemos – e este conhecimento está crescendo – que o número de exoplanetas detectados em condições que consideramos favoráveis à vida é cada vez maior. São exoplanetas que estão no que chamamos “zona habitável”: em volta de uma estrela há uma região em que, devido à distância e características físicas da estrela, um planeta localizado ali pode ter água. E, se existir água, é possível que haja vida. A Nasa, em algum momento, disse que se queremos encontrar vida, temos de seguir a água. Por enquanto, o que sabemos é isso.
O primeiro lugar onde buscamos vida é o Sistema Solar, até porque não temos como ir mais longe. E já seria um grande achado se encontrássemos vida, por exemplo, sob a superfície de Marte ou em alguma das luas de Júpiter. O problema seria, caso identificássemos vida, ter certeza de que é realmente extraterrestre, e não terrestre, porque teríamos de cuidar muito para que em nossas análises, nossos testes, não introduzíssemos nossa própria vida. Mas seria uma grande notícia se descobríssemos vida, por mais primitiva que fosse, porque isso significaria que a vida é mais comum do que imaginamos.
Mas há uma grande diferença entre achar vida microscópica, bacteriana etc., e encontrar vida inteligente. Que perguntas os teólogos teriam de se fazer nesse caso?
A teologia católica – e é a única da qual eu posso falar – tem os instrumentos para tratar disso. Creio que o desafio maior, é claro, viria se encontrássemos vida inteligente. E o interessante é que a teologia católica já passou por isso, quando os europeus vieram e descobriram estas terras onde estamos. Foi uma grande tarefa, para a teologia católica, entender e defender que os índios, os povos originários, tinham os mesmos direitos dos europeus. Não foi algo imediato; é a dificuldade que temos diante de um outro que nos desafia. Mas sim, a teologia católica tem os instrumentos, as possibilidades, uma tradição que lhe permitiria enfrentar a descoberta de vida inteligente.
Na prática, quais seriam os temas que nos desafiariam mais concretamente, que nos fariam pensar? O primeiro é a Encarnação. Há teólogos católicos de posições distintas: ou Deus se encarnou apenas nesta humanidade, nesta civilização, ou então houve múltiplas encarnações. O segundo é a Redenção, se houve uma redenção cósmica, se a realidade do pecado é própria apenas dos seres humanos ou se existiria em outra civilização inteligente. Teríamos de fazer um esforço – que vale para a teologia, mas também para a filosofia – de deixar de pensar com categorias muito antropomórficas e antropocêntricas, porque do contrário o trabalho será bem mais difícil. O desafio é o de sair um pouco do mundo terrestre para ter uma visão mais completa.
E o senhor já pensou sobre essas perguntas?
Sobre a Encarnação, sim. Creio que não seria necessário haver múltiplas encarnações. Poderia oferecer uma resposta bem elaborada, mas darei a resposta breve. Quanto mais simples a explicação, mais elegante ela é. Entendo a Encarnação como um evento único na história do universo, que ocorreu uma única vez, no planeta Terra, há uns 2 mil anos. Deus se encarnou no ser humano Jesus Cristo. E, mediante essa encarnação – isso quem diz é o Concílio Vaticano II, é São João Paulo II na Redemptor hominis –, Deus se uniu a toda a humanidade; não só a nós, que viemos depois da Encarnação do Verbo, mas também aos que viveram antes. E, se é assim, por que não imaginar que, neste evento único da Encarnação do Filho de Deus, Ele também possa ter se unido a qualquer outra raça ou espécie inteligente e capaz de relacionar-se com Deus?
“Entendo a Encarnação como um evento único na história do universo, que ocorreu uma única vez, no planeta Terra, há uns 2,2 mil anos.”
José Funes
Uns dias atrás, circulou nas mídias sociais em português uma citação do papa Pio II, de 1459, em que condenava algumas proposições do cônego Zanino de Sólcia, incluindo esta: “Deus criou um outro mundo além deste, e no seu tempo muitos outros homens e mulheres existiram, e por conseguinte Adão não foi o primeiro homem”. Como responder a esta condenação?
Não conhecia esta citação, e para responder de forma adequada eu teria de estudá-la, analisar o contexto da época. Mas posso dizer algo sobre a menção aos primeiros seres humanos, e não há como sustentar a existência histórica de Adão e Eva ipsis litteris. O que aprendi lendo a Bíblia é que os primeiros capítulos do Gênesis são uma história sobre as origens, sobre as perguntas que todos nos fazemos: de onde viemos? Para onde vamos? Por que existe o mal? Por que nossos governantes são tão corruptos, têm tantos problemas? Por que um ser humano mata outro? Por que abusa do poder? De onde vêm o Sol, a Lua e as estrelas? Essas perguntas existem desde os primórdios da humanidade. A resposta do autor sagrado vem pelas histórias da criação em sete dias, de Adão e Eva, de Caim e Abel, do dilúvio universal.
Só porque esses episódios não tenham ocorrido exatamente como está escrito no livro, quer dizer que não são verdadeiros? Claro que não! Eles contêm verdades reveladas, que nos trazem a mensagem de Deus sobre a criação, e por isso precisamos de uma teologia da criação. O que diz Deus a todo momento no primeiro capítulo do Gênesis? Que aquilo que criou era bom. A primeira mensagem sobre a criação, então, é a de que ela é boa. Isso nos deveria encher de confiança e esperança, porque o Criador também é bom. A história de Adão e Eva já tem outro estilo, mais “antropomórfico”, podemos dizer. De onde vem o mal? Temos a história de Caim e Abel.
Além disso, esses não são os únicos textos bíblicos sobre a criação. Há muitos outros, inclusive no Novo Testamento. São mais cristológicos, como o prólogo do Evangelho de São João e as cartas paulinas. Precisamos ter uma imagem mais completa e não nos prender à literalidade total, porque do contrário vamos cair em muitas contradições e acho que, especialmente depois do processo de Galileu (que, aliás, é posterior a essa citação que você trouxe), a Igreja já deixou isso para trás.
O senhor acredita que estejamos sozinhos no universo? Aliás, “acreditar” é o verbo correto para tratar desse assunto?
Não, certamente não é adequado. Uma coisa é “acreditar” em Deus, de acordo com a fé. Sobre vida extraterrestre, você pode ter uma opinião fundada, assim espero, em conhecimento científico.
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Então, qual é a sua opinião?
Há duas posturas mais extremas na comunidade científica. Uma, até bastante popular, diz que há vida em todos os cantos do universo. Na outra ponta, e esta posição é defendida por menos pessoas, estão os que afirmam que a Terra é o único lugar onde há vida, que nosso planeta é raro. Eu defendo um meio-termo. Não acho nem que a vida seja tão rara, nem que seja tão universal. De qualquer forma, creio haver pouca chance de que nos encontremos com um alienígena de carne e osso. É mais possível, ou mais provável, que nos deparemos ou com inteligência artificial ou que decodifiquemos uma mensagem eletromagnética que nos seja enviada, assim como nós também enviamos sondas e mensagens desse tipo.
O senhor tem uma resposta para o chamado “paradoxo de Fermi”?
Esse chamado “paradoxo” questiona: se há outras civilizações inteligentes, onde estão? Por que não se manifestam? Um fator importante é a enorme distância entre as estrelas. Suponhamos que em algum lugar haja uma civilização que tenha se desenvolvido muito rapidamente (e não há a menor garantia de que isso possa ocorrer). De acordo com nossos conhecimentos de física e tecnologia, mesmo nesse caso as viagens interplanetárias seriam muito difíceis por causa das distâncias. Podemos também pensar em termos não de visitas, mas de mensagens. A arqueologia pode nos ajudar nisso. O que pensaria um antepassado nosso – e nem precisa ser um antepassado muito distante – que nos visse falando em um celular? Pode ser que uma civilização tenha desenvolvido uma tecnologia tão avançada que nós ainda não sejamos capazes de nos conectarmos a ela. Ou, então, ainda não surgiu uma civilização suficientemente avançada que esteja mais próxima à Terra.
O que significaria, pensando nesta pergunta sobre “quem somos”, constatar que estamos sozinhos no universo?
Dizer que estamos sozinhos é mais difícil que pensar que possa haver vida fora daqui, porque nunca conseguiremos provar que estamos mesmo sozinhos. Mas vamos supor que sim. Acho que isso nos traria uma sensação de solidão cósmica, por não termos com quem compartilhar o que construímos. Nós somos sociáveis, queremos nos comunicar com outros. Pensando como humanidade, se um dia chegássemos à conclusão de que estamos sozinhos, não seria uma notícia muito boa. Do ponto de vista teológico, no entanto, creio que não mudaria muita coisa. Mesmo assim, ainda acho ser mais difícil, de uma perspectiva científica, filosófica e teológica, pensar que estejamos sós – mesmo que nunca nos encontremos com os outros.
“Não acho nem que a vida seja tão rara, nem que seja tão universal. De qualquer forma, creio haver pouca chance de que nos encontremos com um alienígena de carne e osso.”
José Funes
Ontem, em sua apresentação, o senhor nos disse que o universo terminará “não com uma explosão, mas com um gemido”, quando sobrarem só os buracos negros. Mas bem antes disso teremos morrido todos assados, quando o Sol se expandir para virar uma gigante vermelha.
Exatamente.
Mesmo se houver outras civilizações inteligentes, também elas desaparecerão bem antes do fim do universo.
É possível.
Quando morrer o último ser inteligente, capaz de conhecer e louvar a Deus, o universo já não terá cumprido seu propósito?
É uma ótima ideia, mas por enquanto está mais para a ficção científica. O que aconteceria com o último ser vivente no universo? Ontem, vendo as reações do público, percebi que é difícil aceitar que possa chegar um dia como esse, em que o universo simplesmente se acabe. Mas eu estava apenas apresentando o conhecimento científico existente até o momento, e que é provisório – às vezes nos esquecemos que a ciência não é um tipo de conhecimento absoluto que vale para sempre. De qualquer forma, até onde sabemos, numa leitura puramente científica, sim, tudo termina ali. Assim como muitos não crentes consideram que, para o indivíduo, se acaba tudo com a morte.
Ontem eu citava Joseph Ratzinger. Há um outro nível de realidade, distinta da realidade natural – não sei se a supera –, que é a realidade do espírito. Neste sentido, também Teilhard de Chardin propõe o “ponto ômega”, segundo o qual todo o universo é atraído – mas não fisicamente – em direção a Cristo. E agora falo mais como crente: na Vigília Pascal temos o círio, em que estão gravadas as letras alfa e ômega, e o ano corrente, e o sacerdote diz “princípio e fim”. Para nós, cristãos, esse princípio e fim é Jesus. Ele está no início e no fim da história da humanidade e da história de cada um de nós, desde quando somos batizados até a hora da nossa morte. Então, aquilo que eu explicava sobre o fim do universo não quer dizer que seja o fim de tudo. Há uma realidade distinta, mas é tarefa dos teólogos, não dos cientistas, explicá-la e tratar de entender o que significa, por exemplo, a ressurreição dos mortos.
“O Apocalipse não vem para dizer que o mundo acaba amanhã, daqui a dez anos, daqui a 2 mil anos, mas para nos dar esperança. Diz que a história humana está nas mãos de Deus.”
José Funes
O livro do Apocalipse deixa subentendido que, quando Cristo voltar, ainda estaremos por aqui...
Mas também é preciso entender bem o livro. Veja a carta de São Paulo aos tessalonicenses. Esses primeiros cristãos pensavam que Cristo já estava para voltar, assim como estamos falando agora e Jesus viesse já na semana que vem para resolver tudo. E não aconteceu. No Apocalipse, Deus revela – e em inglês o livro se chama “da Revelação” – o sentido mais profundo da história humana. Está escrito em uma época de perseguição aos cristãos, e muitas das figuras, das linguagens simbólicas, são incompreensíveis; não é um livro simples de ler, e um amigo jesuíta dizia que era como uma dessas obras de arte moderna. Não se percebe o sentido de imediato.
Essa comunidade perseguida talvez não estivesse vendo significado naquilo pelo que passava; talvez perguntasse “onde está Deus?” São perguntas que os cristãos deveríamos nos fazer: onde O encontramos? Onde Ele está agindo? Então, o livro não vem para dizer que o mundo acaba amanhã, daqui a dez anos, daqui a 2 mil anos, mas para nos dar esperança. Diz que a história humana está nas mãos de Deus; ou, se alguém quiser ser mais “universal”, que a história cósmica está nas mãos de Deus. Não se trata de dizer quando acaba, mas de nos dar esperança e revelar o sentido mais profundo da história.
Livro do Tubo de Ensaio tem mais entrevistas com religiosos e astrônomos
Antes de José Funes, já havia entrevistado outros dois diretores do Observatório Vaticano: George Coyne, que antecedeu o argentino; e Guy Consolmagno, que o sucedeu. Ambos estão em A razão diante do enigma da existência, livro que reúne estas e mais outras dezenas de entrevistas feitas ao longo de 15 anos do Tubo de Ensaio.