Em 12 de fevereiro de 1931, o papa Pio XI inaugurou as transmissões da Rádio Vaticano com uma mensagem “a todos os povos e a todas as criaturas”. Logo no início, o pontífice se refere ao rádio como “maravilhosa invenção marconiana” – presente à cerimônia estava o italiano Guglielmo Marconi, que àquela altura já levava o crédito pela invenção do rádio. No entanto, Pio XI talvez nem sequer suspeitasse que o primeiro a conseguir transmitir a voz humana sem a necessidade de cabos ou fios não era o cientista e engenheiro que estava ali a seu lado, mas um padre brasileiro: Roberto Landell de Moura, que havia falecido três anos antes de a Rádio Vaticano fazer aquela primeira transmissão.
Padre Landell de Moura: Um herói sem glória, lançado em 2006, é a biografia desse sacerdote gaúcho, que aliou a vocação religiosa a uma intensa curiosidade científica, a ponto de aproveitar a preparação para o sacerdócio em Roma para estudar Física e Química na Universidade Gregoriana. Durante um período no qual viveu no Rio de Janeiro, conversava com outro entusiasta das ciências, o imperador dom Pedro II. Como por boa parte da vida Landell não parou por muito tempo no mesmo lugar, alternando-se entre cidades paulistas, fluminenses e gaúchas – seja por transferências de paróquia, seja para realizar tratamentos médicos –, sem falar de um tempo passado nos Estados Unidos, o jornalista Hamilton Almeida, que se encantou com a história do padre Landell ainda na faculdade, nos anos 70, acumulou uma boa milhagem procurando todos os registros possíveis sobre o sacerdote inventor.
Como ocorreu com muitas outras descobertas científicas e inovações tecnológicas, havia muita gente trabalhando simultaneamente nas mesmas teorias ou tecnologias, em diversos locais – era o caso da radiodifusão. Se Marconi havia de fato sido o primeiro a conseguir transmitir sinais telegráficos sem a necessidade de cabos, o livro traz um caminhão de referências da época atestando que foi Landell o pioneiro na transmissão da voz, à época chamada de “telefonia sem fio”. Há escassos testemunhos sobre experiências feitas em 1893 ou 1894, mas, na pior das hipóteses, ficamos com as comprovadíssimas transmissões feitas em julho de 1899 e junho de 1900, ambas em São Paulo, na presença de testemunhas como o cônsul britânico na cidade. Além disso, há também as patentes pioneiras obtidas no Brasil, em 1901, e nos Estados Unidos, em 1904 – o texto completo dessas patentes, com ilustrações, está em um apêndice do livro. Não foi só isso: Landell buscou e estava encontrando soluções para o que viriam a ser o telex e até mesmo a televisão e a fibra óptica!
“Quero mostrar ao mundo que a Igreja Católica não é inimiga da ciência e do progresso humano.”
Padre Roberto Landell de Moura, pioneiro da radiodifusão
Tudo isso sem descuidar do sacerdócio; o padre tinha fama de bom pregador e dava conferências sobre temas religiosos – um outro apêndice do livro tem textos de cunho científico e religioso redigidos por Landell. O sacerdote inventor, no entanto, se permitia uma ou outra extravagância; um ex-coroinha relata o caso da “caixinha” que o padre, então em Mogi das Cruzes (SP), colocava no altar durante a missa e com a qual “conversava”, interrompendo a celebração e retomando-a depois do ponto onde havia parado.
O fato é que, ainda que reportagens da época e livros feitos para divulgar o Brasil no exterior atestassem o pioneirismo de Landell de Moura, em algum momento ainda durante sua vida esse reconhecimento foi minguando. O padre alterna momentos de mais humildade, em que mostra satisfação apenas por ver os avanços da radiodifusão, com outros em que chega a demonstrar uma certa (e justificadíssima) mágoa por não receber o devido crédito por seus feitos. Foi incompreendido de diversas formas, pelas autoridades da Igreja, sim (embora elas também lhe tivessem permitido as viagens ao exterior por motivos puramente científicos), e pela República nascente, que lhe negou os navios com os quais Landell pretendia demonstrar ao governo o alcance dos aparelhos que havia desenvolvido.
Assim como outro grande padre-cientista, Georges Lemaître, o pai da teoria do Big Bang, Landell de Moura não se envolveu ativamente nas discussões sobre religião e ciência, embora fosse contemporâneo dos dois livros que moldaram a tese do conflito, escritos por John William Draper e Andrew Dickson White. A harmonia entre ciência e fé estava mais na pessoa de Landell, como estava na de Lemaître, que em declarações públicas. Isso não significa, entretanto, que elas não existissem, e Almeida recolhe várias delas: “Quero mostrar ao mundo que a Igreja Católica não é inimiga da ciência e do progresso humano”; “Eu vi sempre nas minhas descobertas uma dádiva de Deus (...) sempre trabalhei para o bem da humanidade, tentando ao mesmo tempo provar que a religião não é incompatível com a ciência”; “O que desejo é que o fruto de meus estudos se traduza em proveito e glória de minha pátria, e em holocausto ao Deus Supremo, que me inspira em minhas investigações e me ilumina com suas divinas luzes”; “seu colega contemporâneo [Landell fala de si mesmo em comparação com Santos-Dumont] vive esquecido porque cometeu um crime, o de querer sair da sacristia para mostrar ao mundo que a religião nunca se opôs ao progresso da humanidade”.
É aqui, talvez, que esteja a única lacuna involuntária do livro. O objetivo de Almeida é fazer justiça a Landell de Moura como pioneiro da radiodifusão, e isso ele consegue com riqueza de detalhes, que inclusive satisfazem o leitor com conhecimento técnico – já eu não reconheceria uma ampola de Crookes ou uma bobina de Ruhmkorff sem pesquisar on-line, mas mesmo o leitor leigo percebe nessas menções o esforço de Landell em superar os desafios da transmissão de sons por ondas de rádio. A dimensão do padre-cientista como ponte entre ciência e fé aparece mais como um acréscimo, sem mais aprofundamento além das citações de Landell já mencionadas. Eu, por exemplo, teria adorado saber mais detalhes sobre um episódio específico em que fiéis invadiram o laboratório caseiro do padre e destruíram seus aparelhos, por julgarem que aquilo era coisa do demônio. O próprio Landell mencionou o fato em entrevista a um jornal norte-americano, mas não entra em pormenores, e o livro também não o faz, embora não possamos descartar a possibilidade de que simplesmente não existam mais informações disponíveis a esse respeito. Quem sabe haja algo em Padre Landell: o brasileiro que inventou o wireless, livro mais recente de Almeida, lançado em 2022 e que ainda não li.
Com as patentes norte-americanas de Landell de Moura completando 120 anos em outubro e novembro, vale a pena descobrir a vida e a obra desse padre-cientista brasileiro que, pelo impacto de seu invento, mereceria ser sempre citado ao lado de Lemaître, Nicolau Steno e outros grandes cientistas de batina. É verdade que, assim como está ocorrendo com o pai do Big Bang, está havendo uma recuperação lenta da figura e dos méritos científicos de Landell, mas ainda aquém do devido – muitas fontes estrangeiras, por exemplo, seguem atribuindo pioneirismo a Reginald Fessenden, cuja primeira transmissão ocorreu meses depois daquela de Landell. E termino com esse belo trecho de um texto do padre-inventor, dedicado à natureza e recolhido por Almeida no apêndice do livro:
“Tu és um imenso e misterioso livro atirado por mão infinita aos incomensuráveis esforços do universo, onde todos têm lido, porém nem todos têm colhido as mesmas vantagens, os mesmos frutos da vida eterna!... Porque nem todos têm lido como podiam e deviam ler, porque nem todos o têm lido com os mesmos intuitos e sentimentos. De fato, há quem o leia movido pelo amor ao estudo, pelo amor, quero dizer, aos conhecimentos puramente humanos; há quem o leia impelido pelo desejo ardente da glória, das honrarias ou do renome; há quem o leia martirizado pela sede devoradora do ouro, das riquezas do luxo e bens caducos desta vida; há quem o leia insuflado pelo tufão das paixões desregradas e o insaciável desejo dos prazeres; há quem o leia, finalmente, só pelo desejo ou prazer de o ler, como uma diversão, um passatempo ou para matar o tédio; porém, são bem poucos os que o leem como podiam e o deveriam ler, isto é, deixando-se transportar nas asas da contemplação, do tempo, à eternidade, onde nossas almas, encontrando-se com o Autor da Natureza, o adoram em espírito de verdade e castidade, em espírito de amor e gratidão.”
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