Desde 1982, o Gallup, um dos principais institutos de pesquisa dos Estados Unidos, avalia as opiniões dos norte-americanos sobre “a origem e o desenvolvimento dos seres humanos”. E os resultados da edição mais recente desta pesquisa foram divulgados no fim de julho, com novas mínimas e máximas históricas em relação às duas “pontas” do espectro. A porcentagem dos entrevistados para os quais “Deus criou os seres humanos em sua forma atual há menos de 10 mil anos” é agora de 37%, o menor valor desde que a pesquisa começou a ser feita. Já a porcentagem daqueles para quem “os seres humanos se desenvolveram ao longo de milhões de anos a partir de formas menos avançadas de vida, mas Deus não tem participação neste processo” subiu para 24%, a maior porcentagem registrada desde os anos 80. A terceira alternativa oferecida aos entrevistados – “os seres humanos se desenvolveram ao longo de milhões de anos a partir de formas menos avançadas de vida, mas Deus guiou este processo” – teve a adesão de 34%. A quantidade dos que defendem essa visão já foi maior, chegando a 40% em 1999.
A resposta criacionista (no sentido de uma interpretação 100% literal dos primeiros capítulos da Bíblia) ainda continua a ser a mais citada das três, como tem sido desde que a pesquisa começou a ser feita (apenas uma vez, em 2017, houve um empate com a opção da “evolução guiada por Deus”, ambas com 38%), mas a combinação das porcentagens mostra algo interessante: a maioria (71%) acredita que Deus está envolvido no aparecimento da espécie humana, seja pela criação direta, seja guiando a evolução; e uma maioria diferente, de 58%, afirma que o homem é fruto de um processo evolutivo, tenha ou não sido guiado por Deus.
Mesmo em meio a um processo de secularização, o grupo da “evolução guiada por Deus” segue firme e forte, mantendo-se na casa dos 30% a 40% ao longo de quatro décadas
O Gallup ainda separou as respostas com recortes de religião, frequência a missas ou cultos, ideologia e escolaridade. A proporção de criacionistas aumenta drasticamente entre os que vão à igreja pelo menos uma vez por semana (61%), entre os que se declaram conservadores (55%) e entre protestantes (51%). Na ponta oposta, a opção da “evolução sem Deus” é a vencedora, de forma até bastante previsível, entre os que dizem não ter religião (58%), os autodeclarados “liberais” (44%; o termo, nos EUA, está mais associado a posturas próximas à esquerda política e ao relativismo moral) e os que vão à igreja menos de uma vez por mês (39%). Os grupos em que a opção da “evolução guiada por Deus” foi a mais escolhida foram os dos politicamente moderados (36%), dos católicos (46%) e dos entrevistados com ensino superior (39%).
São todos números que dão muito o que pensar, mas que também exigem algumas nuances. A primeira é que a pesquisa se refere especificamente ao surgimento do ser humano. É possível haver quem aceite mais tranquilamente os postulados evolucionistas para todos os demais seres vivos, mas que pense diferente quando se trata do homem, um ser “especial”? Sim, é possível. Se valeria a pena o Gallup tentar descobrir isso eu já não sei. Uma vantagem notável de a pesquisa usar as mesmas formulações desde 1982 é justamente a possibilidade de se ter uma série histórica bastante abrangente no tempo; se o instituto mudasse a pesquisa agora, essas comparações ficariam impossibilitadas. É um caso diferente daquele do Pew Research Center, outro instituto de pesquisa que também mede a adesão ao criacionismo e à evolução nos EUA, mas que tinha um “fluxograma” diferente, que criava falsas dicotomias; quando o Pew adotou um questionário mais parecido com o do Gallup, em 2019, os resultados tiveram uma alteração forte.
Além disso, o que as pessoas realmente querem dizer quando afirmam que “Deus guiou o processo” que culminou no aparecimento do homem? Ele teria feito intervenções diretas em certos momentos da história da Terra, de forma a que o resultado fosse o Homo sapiens? Teria desenhado as leis da evolução de forma que elas inevitavelmente terminassem no aparecimento do ser humano? Para quem se interessa pelo diálogo entre ciência e fé, essa é uma discussão tão fascinante quanto interminável, e por esse ângulo pode ser meio frustrante deparar com uma pesquisa que só tem uma alternativa dizendo que “Deus guiou a evolução”: “mas guiou como?”, nós nos perguntamos. Mas, honestamente, acho que é melhor assim. Creio que a grande maioria dos que deram essa resposta se contenta em aceitar a ciência da evolução e em saber que Deus está envolvido no processo, ainda que não tenham uma ideia exata de como é a “participação” Dele, seja porque nunca pensaram mais profundamente a respeito, seja porque pensaram e não chegaram a uma conclusão.
A apresentação dos resultados pelo Gallup afirma que as tendências de diminuição do criacionismo e aumento dos que afirmam ter havido um processo evolutivo sem participação divina é reflexo do fato de os norte-americanos estarem se tornando menos religiosos. Os que cremos em Deus e defendemos a evolução como a melhor explicação para a variedade de vida na Terra podemos ver o copo meio cheio e constatar que, mesmo em meio a esse processo de secularização, o grupo da “evolução guiada por Deus” segue firme e forte, mantendo-se na casa dos 30% a 40% ao longo de quatro décadas. Mas também podemos ver o copo meio vazio e perceber que, apesar de todo o bom trabalho feito por entidades como o BioLogos, a queda no criacionismo não está se refletindo em um aumento na ideia de “evolução guiada por Deus”, já que o único grupo que ganha terreno constantemente é o da “evolução sem Deus”. Estaríamos diante de um movimento pendular em que a posição moderada está condenada a jamais se tornar a maioria?
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