Terminei minha coluna de duas semanas atrás, comentando a pesquisa Gallup sobre a adesão dos norte-americanos ao criacionismo ou à Teoria da Evolução, com uma inquietação. A série histórica mostra que, ainda que a parcela de criacionistas esteja em queda, o grupo dos que defendem a evolução em que “Deus guiou o processo” se mantém estável desde 1982, oscilando ali entre os 30% e os 40% (na pesquisa mais recente, é de 34%), enquanto a terceira opção, a da evolução em que “Deus não tem participação neste processo”, é a que vem crescendo, em velocidade até maior que a da diminuição do número de criacionistas. Por que a opção da “evolução guiada por Deus” não está se beneficiando dessa redução na adesão ao criacionismo?
O padre dominicano Nicanor Austriaco, doutor em Biologia e em Teologia e coautor de Thomistic Evolution, afirma que “o número de ateus está crescendo, e isso explica o número cada vez maior de pessoas para quem Deus não tem participação alguma na criação do homem”, e nisso está em linha com a interpretação oferecida pelos autores da pesquisa Gallup, que mencionam a queda na religiosidade dos norte-americanos ao longo das últimas quatro décadas. No entanto, ele destaca uma nuance importante: “precisaríamos conferir se esse aumento no número de ateus está ocorrendo às custas de igrejas fundamentalistas ou de comunidades mais sofisticadas teologicamente”, afirma. Este é um recorte que a provavelmente a pesquisa não capta, a julgar pelos recortes presentes no questionário, que no máximo pergunta se o entrevistado é católico, protestante ou de outra religião, e com que frequência vai a missas ou cultos.
“A palavra ‘guiou’ dá a ideia de um processo intervencionista, quando na verdade cremos que Deus usou a evolução.”
Tiago Garros, biólogo e doutor em Teologia.
O biólogo Tiago Garros, doutor em Teologia e colaborador da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2), pondera que as variações registradas na série histórica não são tão drásticas. De fato, a diferença entre as mínimas e máximas históricas é de 10 pontos porcentuais para o criacionismo, e 9 pontos porcentuais para a “evolução guiada por Deus”. E, se olharmos com mais atenção para o gráfico publicado pelo Gallup, veremos que as duas curvas apresentam uma certa simetria: quando uma cai, a outra cresce. Apenas a terceira curva, a da “evolução sem participação divina”, tem uma dinâmica diferente, em ascensão contínua e diferença maior (15 pontos porcentuais) entre a mínima e a máxima histórica.
Além disso, afirma Garros, a formulação das alternativas deixa muito a desejar. “Eu tenho sérios problemas com o wording da pesquisa, as opções são ruins. Nós marcaríamos que a evolução foi guiada por Deus? Não, porque a palavra ‘guiou’ dá a ideia de um processo intervencionista, quando na verdade cremos que Deus usou a evolução. Se houvesse uma opção dessas, eu a escolheria. O que alguém quer dizer quando seleciona a resposta da evolução ‘guiada’ por Deus? Esse ‘guiar’ não é detectável cientificamente, é metafísico”, diz Garros.
Seria possível, então, que um cristão escolhesse a resposta da “evolução sem participação divina” apenas para se distanciar de correntes “intervencionistas”, como o Design Inteligente? “Em tese, sim”, responde Garros. “Mas, se o Gallup me procurasse, eu escolheria a ‘evolução guiada por Deus’ mesmo criticando esse palavreado, só porque sei que o entrevistador tem em mente, na verdade, a contraposição entre as visões ateísta e teísta. Provavelmente muitos que pensam como eu selecionaram a ‘evolução guiada’ na falta de uma opção que descreva melhor o que nós acreditamos”, acrescenta o biólogo, que lembra a existência de pesquisa acadêmica sobre o efeito das frases utilizadas nesse tipo de pesquisa, e como os resultados mudam drasticamente dependendo das alternativas oferecidas ao entrevistado.
Eu compreendo o drama de quem passa anos estudando esse tema para se deparar com uma pesquisa de opinião que só dá essas três alternativas. Mas não sei como resolvê-lo. As maneiras como um cristão evolucionista pode dizer que Deus “participa”, “influencia”, “usa”, “guia”, “orienta” etc. a evolução são tantas e tão variadas que uma pesquisa com uma lista abrangente de respostas só seria aplicável em um congresso acadêmico de ciência e religião, e ainda haveria gente dizendo que a sua opinião não estava contemplada. Por outro lado, algo assim seria inútil para o público geral, que muito provavelmente ficaria confuso.
Por isso, Garros sugere uma ligeira mudança nos termos. “Se fosse eu elaborando a pesquisa, colocaria as seguintes alternativas: ‘Deus criou os seres vivos em sua forma atual há menos de 10 mil anos atrás’; ‘Deus usou a evolução para criar os seres vivos’ e, por fim, ‘a evolução ocorreu e não há Deus’”, propõe o biólogo. Soa melhor mesmo – talvez eu apenas acrescentasse um “sem intervenções diretas” na segunda alternativa, e incluísse algo como “os seres vivos surgiram por processos naturais, mas Deus interferiu em determinados momentos” para contemplar linhas como o DI sem precisar mencioná-lo pelo nome, que nem todos conhecem. A série histórica iria para o beleléu, mas o resultado provavelmente seria mais fiel ao que as pessoas realmente pensam.
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