Neste ano tive o privilégio de receber dois convites para dar palestras sobre ciência e fé na opinião pública e na imprensa, e em ambas usei um exemplo que eu acho muito emblemático e que já critiquei aqui na coluna: o de uma reportagem do Estadão por ocasião de uma nomeação para a Biblioteca Nacional, em 2019. O título era “Novo presidente da Biblioteca Nacional será guardião de obras feitas na fase da ‘Terra plana’”. Lendo a reportagem, ficamos sabendo que houve um “tempo em que alguns setores da ciência ainda consideravam a Terra plana”; o máximo que o repórter consegue voltar no tempo em termos de acervo é uma referência a “um manuscrito grego dos evangelhos do século 11”, e juntando as peças temos a reprodução da mitologia segundo a qual os cristãos medievais acreditavam na Terra plana.
Fico imaginando a surpresa que o jornalista teria se soubesse que Santo Agostinho, n’A Cidade de Deus, já dizia – no século 5.º! – ser “suposto ou demonstrado cientificamente que o mundo é de uma forma redonda e esférica”. Ele também levaria um susto ao saber que, no século 13, São Tomás de Aquino se referiu à esfericidade da Terra até na Suma Teológica (IIa Iae, q.54, a.2). E talvez ficasse ainda mais boquiaberto ao ler o Tratado da Esfera, escrito também no século 13 (mas décadas antes da Suma) por João de Sacrobosco, que a editora Concreta publicou em edição bilíngue em 2018, usando a tradução feita no século 16 por dom Pedro Nunes, cosmógrafo-mor de Portugal. “Esfera”, aqui, não é tanto uma referência ao nosso planeta, mas ao cosmo como um todo – o que também inclui a Terra.
Com a tradução já pronta, o toque especial desta edição fica por conta da apresentação e das notas de rodapé de Marcos Monteiro. Ele nos conta o pouco que se sabe de Sacrobosco (por exemplo, que ele lecionou Astronomia na Universidade de Paris), o contexto em que a obra foi escrita e sua grande repercussão, com inúmeras edições publicadas após o surgimento da imprensa, muitas delas comentadas com diferentes propósitos – no caso de dom Pedro Nunes, por exemplo, tratava-se de uma edição que tinha em mente ajudar Portugal naquilo que o país fazia de melhor: navegar. Mas, originalmente, o Tratado da Esfera surgiu como uma espécie de “livro didático” medieval, feito para os alunos do Quadrivium, ou seja, adolescentes – o que nos mostra o quanto emburrecemos de lá para cá...
Sacrobosco não gasta muito latim escrevendo sobre a esfericidade da Terra, sinal de que o estudante medieval já sabia muito bem o formato do planeta, dispensando a necessidade de comprovação
Às vezes parece haver mais nota de rodapé que tratado, mas sem elas arrisco dizer que não seria tão simples entender o que Sacrobosco está dizendo – isso apesar de o Tratado ser uma obra bem direta, escrita para principiantes, como vimos acima. Além disso, as notas servem para Monteiro trazer outros detalhes interessantíssimos, como o fato de Sacrobosco recorrer à literatura clássica com certa frequência, e ter influenciado a literatura posterior: eu, fã dos Lusíadas, gostei muito de ver trechos do poema épico de Camões que parecem beber diretamente da fonte do Tratado da Esfera. A edição da Concreta ainda traz uma série de gravuras retiradas de diferentes edições da obra publicadas na Idade Média e no Renascimento.
É interessante ressaltar que Sacrobosco não gasta muito latim escrevendo sobre a esfericidade da Terra: dedica ao assunto apenas dois trechinhos do primeiro capítulo, um sobre “a redondeza da terra” e outro sobre “a redondeza da água”, que juntas formam nosso planeta. Isso, segundo Monteiro, é um sinal de que o estudante medieval já sabia muito bem que a Terra era esférica, e por isso não era preciso que os professores tivessem de reforçá-lo ou comprová-lo. Além disso, como também recorda Monteiro na introdução, ao contrário do que diz a mitologia histórica, para o cristão medieval não apenas a Terra era esférica como necessariamente deveria sê-lo, já que a esfera era vista como a forma geométrica mais perfeita. Mas, claro, vá dizer isso para o repórter do Estadão...
Com tão pouco a dizer sobre o formato do planeta, já que não era necessário se debruçar muito sobre o que era consensual em sua época, Sacrobosco passa todo o resto do tratado descrevendo as outras “esferas” que compõem o universo: fala do movimento dos astros no céu; de equinócios e solstícios; eclípticas, zodíacos, trópicos e círculos polares; signos e estrelas; a duração dos dias e das noites dependendo do que hoje conhecemos como latitude; e vários outros assuntos correlatos, de forma que o estudante medieval teria uma ideia bem abrangente da mecânica celeste de seu tempo.
Muito do que está escrito no Tratado da Esfera ficou para trás? É certo que sim. Sabemos que a Terra não é imóvel nem está no centro do universo; que as órbitas dos corpos celestes não são circulares; que muita gente vive entre os dois trópicos (o que dom Pedro Nunes já comentava, tendo vivido na época das Grandes Navegações, três séculos depois de Sacrobosco). Outros conteúdos seriam hoje classificados mais como astrologia – não no sentido dos horóscopos dos jornais (ainda publicam isso?) – que como astronomia. Isso é o de menos; o fato de haver conhecimento obsoleto no Tratado da Esfera não anula o caráter excepcional dessa obra, um exemplo notável do esforço medieval em conhecer o universo feito “com medida, quantidade e peso” (Sb 11,21) por Deus.
Como um pequeno brinde, fiquem também com o episódio do excelente podcast português Café Ciência e Fé sobre João de Sacrobosco:
Inscrições para conferência da ABC2 seguem abertas
Este é o último mês para fazer a inscrição na quarta Conferência Nacional da Associação Brasileira dos Cristãos na Ciência, que ocorre de 14 a 17 de novembro em Belo Horizonte, com valor promocional de R$ 250 (depois disso o preço sobe para R$ 320). A programação em detalhes ainda não está fechada, mas os horários já foram definidos, com início no fim da tarde do dia 14 e encerramento no fim da manhã do dia 17.
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