O Marco Legal das Startups acaba de completar três anos de vigência e trouxe uma série de inovações que visam impulsionar o ecossistema de startups no Brasil. Em vigor desde o dia 1º de setembro de 2021, ele foi instituído pela Lei Complementar n.º 182/2021 – sancionada em 1.º de junho daquele mesmo ano. Entre as principais mudanças, destaca-se a abertura do caminho para a contratação pública de soluções inovadoras, transformando o setor público em um importante cliente para as empresas que têm como base a inovação e a tecnologia.
O advogado Carlos Henrique Piacentini, especialista em direito empresarial e societário e sócio do Escritório Vanzin & Penteado Advogados, explica que a nova legislação criou condições mais flexíveis para que startups possam participar de licitações e apresentar suas soluções ao governo – nas esferas federal, estadual e municipal –, permitindo a execução de contratos experimentais para testar novos produtos e serviços. “Isso oferece um novo horizonte tanto para o setor público, que precisa se modernizar e buscar eficiência, quanto para as startups, que ganham um mercado com alto potencial de crescimento”, afirma.
Desde o início da sua vigência, algumas iniciativas e projetos concretos já usaram a legislação para promover a inovação. Entre os exemplos de destaque, estão ações como o Programa Brasil Mais, do Governo Federal, voltado para a transformação digital e a eficiência de pequenas e médias empresas e o Programa de Inovação Aberta do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que lançou programas de “encomenda tecnológica” para contratar soluções inovadoras de startups, especialmente na área de impacto social e ambiental.
Contratação pública
Historicamente, o advogado lembra que o processo de contratação pública era burocrático e dificultava a inserção de startups, que muitas vezes não tinham capacidade financeira ou estrutura para cumprir requisitos rígidos das licitações.
Com o Marco Legal das Startups, esse cenário começou a mudar, uma vez que legislação traz novo modelo de licitação, o chamado Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), além de criar um ambiente seguro para a experimentação de soluções em fase de desenvolvimento, com o “sandbox” regulatório, que permite a autorização temporária às empresas disruptivas para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais ainda não regulamentados.
“Isso facilita a adaptação de tecnologias inovadoras às necessidades do setor público antes de um contrato de maior escala”, analisa.
Na prática, com essa flexibilização, o governo pode contratar soluções de maneira mais ágil e eficiente, sem a necessidade de seguir o modelo tradicional de licitação pública, conhecido por ser um processo longo e engessado. As startups, por sua vez, encontram no setor público um novo campo para expandir suas operações e validar suas soluções em larga escala.
Piacentini enfatiza que a integração de startups no setor público tem o potencial de transformar como os serviços são prestados à população. Soluções tecnológicas, como inteligência artificial, análise de dados, internet das coisas (IoT) e automação de processos podem revolucionar áreas como saúde, educação, segurança e mobilidade urbana. “São setores que precisam de fluxos ágeis e respostas assertivas para ser possível resolver os problemas mais urgentes das pessoas”, comenta.
Além de modernizar os serviços, o advogado ressalta que a contratação de soluções inovadoras reduz custos operacionais e melhora a eficiência no uso de recursos públicos, o que é um ponto muito importante em um cenário de restrições orçamentárias enfrentado por grande parte das administrações. “Ao criar um ambiente onde a tecnologia é parte do processo de modernização, o Brasil também fortalece sua posição no cenário global de inovação”, reforça.
Porta aberta para inovação
Entre os principais pontos do Marco Legal das Startups, destacam-se as novas regras que simplificam a criação de startups e oferecem incentivos fiscais para investidores. O especialista reforça, ainda, que a legislação proporciona mais segurança jurídica para as empresas e incentiva a modernização da administração pública ao permitir a contratação de startups para desenvolver e testar soluções tecnológicas. Isso é feito por meio dos chamados Contratos Públicos para Soluções Inovadoras (CPSI).
Segundo ele, o CPSI surge como uma das ferramentas mais importantes da nova lei, porque permite que o poder público contrate startups para desenvolver soluções inéditas, mesmo que envolvam riscos tecnológicos.
Novas oportunidades no Paraná
Os governos estaduais e municipais também estão aproveitando a legislação para impulsionar a inovação e o empreendedorismo. No Paraná, foi recentemente sancionada a Lei 22.107/2024, que traz uma série de atualizações importantes para o ambiente de inovação e para as startups interessadas em fornecer soluções ao governo estadual.
Carlos Piacentini diz que a nova legislação estadual segue a linha do Marco Legal das Startups na busca pela modernização nas contratações públicas. A lei prevê processos mais simplificados para contratações inovadoras e estabelece critérios que permitem a celebração de contratos para o desenvolvimento de tecnologias emergentes, mesmo em cenários de risco tecnológico, tal como já ocorre ao nível federal com o CPSI.
O advogado salienta que outro ponto central da nova legislação local é o incentivo à criação de fundos municipais próprios para promover a descentralização dos recursos do fundo estadual para os municípios. “Essa medida visa facilitar o repasse de verbas para que os municípios também invistam em inovação, contratando startups para desenvolver soluções locais, promovendo o desenvolvimento tecnológico em várias regiões do estado”, pontua.
Além disso, para consolidar o Paraná como um polo de inovação no Brasil, no ano passado foi sancionada a Lei 21.354/2023, que trouxe novos incentivos e mecanismos para fomentar o desenvolvimento de startups no estado. Segundo o especialista, a legislação visa fortalecer o ecossistema de inovação, oferecendo apoio financeiro, regulamentando as parcerias público-privadas (PPPs) e criando um ambiente mais propício para o surgimento e crescimento de empresas tecnológicas. “A lei estabelece mecanismos que facilitam o acesso das startups a recursos financeiros, seja por meio de fundos estaduais ou por parcerias com o setor privado”, pontua.
De acordo com Piacentini, um dos destaques da lei é a implementação do “sandbox regulatório”, conceito que vem ganhando força no Brasil para estimular a inovação. O sandbox regulatório permite que startups desenvolvam e testem novas soluções tecnológicas em um ambiente controlado, com regras mais flexíveis e menor risco regulatório. “As empresas podem lançar produtos e serviços inovadores sob supervisão do governo, mas sem estarem sujeitas, de imediato, a todas as exigências normativas. Esse modelo oferece às startups a oportunidade de aprimorar suas inovações, corrigir falhas e comprovar a viabilidade de seus projetos antes de se submeterem às regulações tradicionais”, comenta.
O advogado destaca que aplicação do sandbox regulatório é especialmente relevante para áreas de rápida evolução, como fintechs, saúde digital e tecnologias limpas, onde o desenvolvimento de novos produtos pode encontrar obstáculos em uma regulamentação que não acompanha a velocidade da inovação.
Modalidades de contratação
O advogado da Vanzin & Penteado esclarece que o Marco Legal das Startups reforça o incentivo na utilização das modalidades destinadas à contratação de soluções inovadoras que permitem ao governo estabelecer parcerias estratégicas com startups, criando um ambiente favorável à inovação aberta e ao desenvolvimento tecnológico.
O especialista informa que o novo ambiente reforça, inclusive, soluções já existentes, como a contratação por “encomenda tecnológica”, modalidade de contratação que permite ao governo adquirir soluções inovadoras ainda em fase de desenvolvimento. “Nesse formato, o poder público não contrata apenas um produto pronto, mas investe diretamente na criação e no aprimoramento de uma tecnologia inédita, atuando como um parceiro estratégico para startups e empresas de inovação”, analisa.
É uma forma de estimular a inovação aberta, na qual diferentes agentes colaboram para o desenvolvimento de novos produtos, com foco em pesquisa e desenvolvimento (P&D).
Já o “diálogo competitivo” é um procedimento de licitação voltado para projetos de alta complexidade, como grandes obras de infraestrutura e desenvolvimento de tecnologias avançadas. O poder público abre espaço para que diferentes empresas, incluindo startups, participem de um processo de diálogo, no qual as soluções são discutidas e aprimoradas conjuntamente antes da definição de um contrato. “Esse formato, embora pouco difundido, pode ser especialmente útil para projetos nos quais as necessidades e soluções não estão completamente definidas no início. Durante o processo, o governo pode discutir com os proponentes as melhores abordagens tecnológicas e soluções inovadoras, garantindo que o resultado atenda eficientemente às demandas do projeto”, salienta.
Requisitos jurídicos para participação em licitações
Piacentini fala que, para as startups poderem participar dessas novas modalidades de contratação pública, alguns requisitos jurídicos e práticos precisam ser observados. De acordo com ele, o Marco Legal das Startups prevê que as empresas inovadoras devem estar enquadradas como startups, ou seja, estejam caracterizadas como micro ou pequenas empresas com receita bruta anual de até R$ 16 milhões e atuem na inovação, seja pela criação de novos produtos, seja pela melhoria de processos.
Além disso, as startups precisam garantir que possuem capacidade técnica e operacional para fornecer a solução proposta. Isso inclui a validação da tecnologia e a demonstração de que podem operar em ambiente de grande escala, como o do setor público.
Embora a Lei Complementar nº 182/2021 tenha flexibilizado algumas regras e criado mecanismos como o CPSI, Piacentini alerta que muitos dos obstáculos que impedem startups de participar efetivamente de licitações públicas permanecem. “Por isso, é necessário que os contratos de serviço e a assessoria jurídica das startups sejam especializados nessa área de atuação para evitar problemas futuros”, comenta.
Um dos principais entraves é a burocracia envolvida nos processos licitatórios. “Startups, por sua natureza, operam em ambientes ágeis e dinâmicos, o que muitas vezes entra em choque com as exigências formais dos processos de contratação pública. Mesmo com as flexibilizações previstas no Marco Legal, essas empresas ainda se deparam com uma estrutura regulatória complexa e demorada”, afirma. Documentações extensas, critérios rígidos e o tempo elevado para aprovação e execução de contratos são fatores que afastam muitas startups desse mercado.
Outro ponto crítico é a gestão de riscos. Soluções inovadoras, especialmente aquelas que envolvem novas tecnologias, trazem consigo um grau de incerteza natural, o que pode ser visto como um fator desestimulante para o setor público. O risco tecnológico — a possibilidade de a solução proposta não atingir os resultados esperados ou não ser totalmente viável — é um dos maiores receios das entidades governamentais ao contratar startups. “Esse temor pode levar à preferência por soluções já testadas e menos arriscadas, em detrimento de tecnologias inovadoras que poderiam oferecer maiores benefícios a longo prazo”, salienta.
O advogado avalia que a superação desses desafios depende de um alinhamento maior entre as políticas públicas e o ecossistema de startups, além de uma evolução contínua na forma como o setor público lida com a inovação. “Simplificar ainda mais os processos burocráticos e adotar uma abordagem mais equilibrada na gestão de riscos são passos essenciais para garantir que as startups tenham um papel cada vez mais ativo na modernização do Estado brasileiro”, ressalta.
Piacentini destaca, ainda, que mesmo com os desafios existentes, o Marco Legal das Startups representa um importante avanço na busca por modernização e eficiência nas contratações públicas. “À medida que mais governos estaduais e municipais comecem a adotar medidas semelhantes, o ambiente vai se tornando cada vez mais propício para startups que buscam inovar no setor público”.
Para ele, o caminho está bem pavimentado, mas o processo de adaptação requer tempo e a construção de um diálogo mais próximo entre startups e órgãos governamentais.