Em junho de 2002, o traficante carioca Elias Maluco – integrante do Comando Vermelho (CV) e chefe do crime no Complexo do Alemão – estampou a capa de todos os jornais brasileiros por cometer um crime brutal e macabro.
Ajudado por três comparsas, ele capturou, torturou e matou o repórter Tim Lopes, da Rede Globo, que produzia uma matéria na região. Lopes investigava um baile funk, realizado na Vila Cruzeiro, onde o comércio de drogas rolava solto e garotas menores de idade participavam de shows de sexo explícito.
Após levar o jornalista para a favela da Grota, principal reduto de Elias, os quatro criminosos iniciaram um ritual digno dos piores filmes de terror.
Primeiro atiraram no pé de Lopes, para evitar que ele se movimentasse ou tentasse fugir. Em seguida, queimaram seus olhos com brasa de cigarro.
E, usando uma espada no estilo samurai, o próprio líder do grupo desferiu um golpe quase fatal, que o cortou do tórax até o umbigo.
Ainda vivo, Tim Lopes teve os braços e pernas decepados. Por fim, foi colocado em uma pilha de pneus, coberto de gasolina e queimado (num processo chamado pelos bandidos de “micro-ondas”).
Agora, mais de 20 anos depois, a imagem de Elias Maluco voltou ao noticiário – desta vez, estampando uma tatuagem.
A “homenagem” foi feita pelo rapper Oruam, da Cidade de Deus, que também pintou no corpo o rosto de outro traficante sanguinário: Marcinho VP, seu pai e um principais líderes do Comando Vermelho (junto com Fernandinho Beira-Mar).
Elias, fiel escudeiro de VP e tio de consideração do artista, morreu em 2020. Foi encontrado enforcado em uma cela da Penitenciária Federal de Catanduvas (PR), onde cumpria pena de 28 anos pela morte de Lopes (e mais dez por lavagem de dinheiro).
Mas seu superior imediato segue vivo. Preso desde 1996, Marcinho está encarcerado há 14 anos em Catanduvas. De lá, segundo a imprensa, comanda boa parte das atividades do CV (o que inclui roubos, sequestros, estupros e assassinatos, além, é claro, do tráfico de drogas e armas).
Oruam, no entanto, acredita que o pai, condenado a uma pena de 44 anos, já pagou por seus crimes – e, por causa de uma omissão da Justiça, deveria estar livre neste momento.
No último domingo (24), na capital paulista, ele usou o palco do festival internacional Lollapalooza como palanque para pedir a soltura de Marcinho VP. Vestindo uma camiseta com a foto do traficante e a palavra “liberdade”, o artista acabou no centro de uma polêmica que começou nas redes sociais e foi parar na polícia.
Em uma nota publicada em seus perfis, Oruam se justificou: “Não tentem tirar de uma pessoa o direito de reivindicar condições melhores para o seu pai, e nem de querer vê-lo em liberdade”.
A declaração não foi suficiente para limpar sua barra. Na terça-feira (26), o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP) cobrou uma atitude da Polícia Civil de São Paulo com relação ao caso.
Em seu requerimento, o parlamentar diz buscar “esclarecimentos sobre as medidas que esta corporação irá adotar em relação ao fato ocorrido, o qual fica comprovado a manifestação de apologia ao crime e associação ao tráfico de drogas”.
Com ingressos no valor de mais de R$ 1 mil, o Lollapalooza é transmitido pela Globo na tevê aberta, em canais por assinatura e via streaming. Seu rol de patrocinadores e apoiadores conta com grandes marcas dos ramos de bebidas, cosméticos e tecnologia (até o Governo Federal aparece na lista).
Contudo, nenhuma dessas empresas repudiou, ou sequer comentou, a performance – o que levou muitos comentaristas a questionar se elas agiriam da mesma forma caso o rapper tivesse feito outro tipo de manifestação inadequada (do ponto de vista das políticas identitárias, por exemplo).
Rapper cobra R$ 150 mil por show e tem quase 8 milhões de seguidores no Instagram
Nome ascendente no meio musical, Oruam, de 23 anos, é um dos destaques da cena do trap, ao lado de figuras como KayBlack, Matuê, Teto e L7nnon, entre outros.
Trata-se de um subgênero do rap marcado, basicamente, por sonoridades mais experimentais e psicodélicas, além de vocais melodiosos gravados com efeitos capazes de driblar uma eventual falta de habilidade dos cantores.
Isso nos Estados Unidos. Por aqui, o estilo se caracteriza por produções caricatas e padronizadas, com alguns lampejos de originalidade quando recebem influências do funk carioca ou de ritmos regionais.
O que não impede o trap de ser um fenômeno de público, acima de tudo por suas letras sobre festas, drogas, sexo, armas, carros, crimes e relacionamentos. Em 2023, os “trappers” conseguiram o feito de rivalizar com os sertanejos no topo das paradas de sucesso nacionais, ocupando espaços importantes principalmente nos serviços de streaming.
Contratado da principal gravadora/produtora do segmento, a Mainstreet Records, o filho de Marcinho VP tem 11,2 milhões de ouvintes mensais no Spotify e quase 8 milhões de seguidores no Instagram.
Seu cachê atualmente gira em torno de R$ 150 mil por show, e estima-se que sua fortuna já bata na casa dos R$ 40 milhões. Fortuna feita com a música, que fique claro.
Afinal, não se sabe se ele tem acesso a algum recurso financeiro proveniente dos negócios ilícitos do pai – embora sua mãe, Márcia, tenha sido presa quatro vezes, sempre por motivos ligados à lavagem de dinheiro.
Essas prisões levaram Oruam e seus irmãos a serem criados pelas tias. A família, por sinal, é extremamente religiosa (ligada, em grande parte, à Assembleia de Deus).
Uma das irmãs dele, inclusive, tentou se lançar como cantora gospel. Arquiteta de formação, Débora Gama chegou a gravar um álbum em 2018, com letras escritas – pasmem! – por Marcinho, convertido há cerca de 20 anos.
Gerado durante uma visita íntima, o rapper conta, na mesma nota publicada após o Lollapalooza, que só pode ver o pai uma vez por mês. “Por poucas horas e através de um vidro, sem nenhum contato físico”, afirma.
Mas sua carreira é acompanhada atentamente por VP, que se diz orgulhoso quando ouve colegas de presídio elogiarem suas músicas. Não por acaso, um de seus maiores hits leva o título de “Filho do Dono”.
“Não tenho medo / Eu sou filho do dono / Maior responsa de sujeito homem / De carro, bicho, eu fiz ela endoidar / Hoje onde eu passo todas quer [sic] me dar”, diz a letra.
Segundo o artista, o traficante ficou especialmente feliz quando soube de seu show no cruzeiro organizado pelo jogador Neymar, em dezembro do ano passado.
Além de se apresentar no navio, Oruam foi cortejado pelo próprio anfitrião, que fez questão de apresentá-lo ao filho mais velho, Davi Lucca, de 12 anos, seu fã.
Rapper promoveu “motociata” que parou o Rio de Janeiro para comemorar seu aniversário
Mauro Davi dos Santos Nepomuceno (a exemplo do ex-deputado Onaireves Moura, nascido Severiano, Oruam criou uma alcunha invertendo as letras de seu nome) ainda acrescenta outro elemento à sua “lenda pessoal”: é dono de um estilo de vida excêntrico, turbinado por muita ostentação.
A começar por sua coleção de veículos, avaliada em cerca de R$ 11 milhões e cujos destaques são um Porsche 911, uma SUV, um Audi TT RS, duas Lamborghinis, um ônibus personalizado e um quadriciclo.
Dirigindo este último em alta velocidade pelas ruas do bairro carioca da Cidade de Deus, ele sofreu um acidente e foi parar num pronto-socorro – mais tarde, colocou a culpa em quem o inveja.
Não foi a primeira vez que o artista colocou a vida de pessoas em risco no trânsito. No final de fevereiro, Oruam convocou uma “motociata” caótica em comemoração ao seu aniversário, com direito a muito ronco de motor e queima de fogos de artifício.
Centenas de amigos e fãs, a maioria sem capacete, participaram do rolezinho, iniciado no Complexo da Penha (na Zona Norte do Rio de Janeiro) e encerrado na Cidade de Deus (na Zona Oeste). Moradores de várias regiões da cidade se queixaram do bloqueio causado pelas motos e, principalmente, do barulho feito pela turba (o evento, para piorar, ocorreu de madrugada).
Nas redes sociais, nosso “Mauro ao contrário” costuma aparecer se divertido em piscinas e pilotando sua lancha, sempre ao lado da namorada, a estudante de veterinária Fernanda Valença. Graças à fama do amado, ela mesma acabou virando influencer, e hoje tem mais de 1 milhão de seguidores no Instagram.
Em dezembro de 2023, no entanto, o jornal carioca O Dia noticiou que outra influenciadora digital, de apenas 17 anos, alegou estar grávida de Oruam. A garota chegou a afirmar que o rapper assumiria o bebê, mas o assunto acabou morrendo na casca.
Oruam também adora pets, de preferência exóticos. Além de um pitbull batizado de Beira-Mar (sugestivo, não?), seu minizoo particular conta com um macaco, dois papagaios, uma arara multicolorida e um felino da raça Savannah F1, considerada a mais cara do mundo (custa cerca de R$ 120 mil).
Resultado do cruzamento entre um gato doméstico e um serval (animal natural das savanas africanas), o bichano teve de ser adestrado por um profissional para se comportar na mansão do artista. Outra peculiaridade dá conta de sua alimentação. Malandrex, como o chamam, só se alimenta de presas frescas, como codornas, frangos e ratos.
Toda essa extravagância se estende ao próprio físico do artista. Depois de trocar seus dentes por implantes de ouro, ele resolveu preencher metade da pele com tattoos. Detalhe: todas feitas no mesmo dia, por uma equipe de tatuadores.
Para isso, internou-se em um hospital, onde recebeu anestesia geral e passou horas sendo desenhado. Saiu de lá com o lado esquerdo do corpo inteiro pintado.
“Olha o meu chefe, Marcinho, esse daqui é o meu pai. Esse daqui é o meu tio, Elias Maluco. E esse é o meu primo, Raul [filho de Elias]”, disse nas redes sociais, após a operação bizarra.
Oruam ganhou 100 mil novos ouvintes no Spotify depois de episódio polêmico em festival
A ligação de Oruam com o crime, que extrapola a filiação e flerta com a exaltação, parece não incomodar o público e a mídia. Pelo contrário.
No dia seguinte à controvérsia no Lollapalooza, ele ganhou 100 mil novos ouvintes no Spotify. Com isso, tornou-se o terceiro artista brasileiro de rap/trap mais executado na plataforma.
Uma semana antes, foi tratado com reverência no programa ‘TVZ’, exibido pelo canal pago Multishow (do sistema Globo). A atração, conhecida por promover um rodízio de apresentadores famosos, era comandada pela dublê de cantora e empresária Preta Gil.
“O cara é o momento”, disse a filha do ex-ministro da Cultura, derretendo-se pelo convidado. Em outro ponto da entrevista, Preta perguntou o que o artista seria se não fosse cantor. “Herdeiro”, ele respondeu, num tom de total deboche.
E tem mais. Nesta quinta-feira (28), Oruam fará o primeiro show de uma turnê internacional por quatro países – Portugal, Espanha, Suíça e Angola.
Longe do Brasil e das polêmicas, ele poderá se comportar, mais do que nunca, como o “filho do dono”.
A reportagem da Gazeta do Povo solicitou à assessoria de imprensa do Multishow uma entrevista com a direção artística do canal, mas não obteve retorno após o primeiro contato. Também procurou a Mainstreet Records, gravadora do rapper, e não recebeu uma reposta até a publicação deste texto.
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