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O padre Robert Sirico, fundador do Acton Institute
O padre Robert Sirico, fundador do Acton Institute| Foto: Acton Institute

Fundado em 1990 em Grand Rapids, a cidade natal do ex-presidente americano Gerald Ford, no estado de Michigan, o Acton Institute é um dos maiores expoentes de defesa da liberdade nos Estados Unidos. Batizado em homenagem ao historiador britânico John Dalberg-Acton, o think tank ampara-se no mote cunhado pelo próprio Lorde Acton - “O poder tende a corromper. E o poder absoluto corrompe absolutamente” - para promover uma sociedade “livre e virtuosa”, calcada na defesa do livre mercado e da moralidade cristã.

Todos os anos, quem quer que participe da Acton University – um encontro de três dias que reúne mais de mil pessoas de 80 países diferentes - há de esbarrar com o fundador desta empreitada pelos corredores do evento, portando um colarinho branco e um crachá de “presidente emérito”. Trata-se do padre Robert Sirico, o sacerdote de raízes italianas que encontrou na fé católica o embasamento moral para os escritos de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. O sobrenome em comum com o recém-falecido ator Tony Sirico, aliás, não é mera coincidência: o sacerdote é seu irmão mais novo.

Ao longo dos anos, Sirico se tornou um prolífico comentarista político e cultural: seu último livro, que chegará ao Brasil em novembro, trata das lições econômicas nas parábolas de Jesus Cristo. No último mês de junho, recebeu a Gazeta do Povo em Grand Rapids para a conversa abaixo, na qual falou sobre a moralidade do livre mercado, o apoio dos conservadores a regimes “iliberais” e os desafios do movimento pró-vida após a derrubada do Roe versus Wade.

O título do seu novo livro é “A Economia das Parábolas”. Não é muito comum enxergar lições econômicas nas histórias que Cristo contava. O que, afinal, elas têm a ver com a economia?

Em primeiro lugar, é importante que as pessoas entendam que, quando falo em economia, não estou me referindo a abstrações, modelos econômicos ou equações matemáticas, mas à questão central que é: como os seres humanos sobrevivem em um mundo onde há escassez? Nós, afinal, não temos tempo o suficiente, não temos recursos o suficiente, e isso exige que economizemos, ou seja, que os utilizemos racionalmente. Nós priorizamos e negociamos, trocamos coisas que consideramos inúteis pelo que valorizamos ou precisamos mais. E é disso que se trata a economia.

Isto dito, como um padre que prega sobre as parábolas de Cristo há muitos e muitos anos, e também como alguém que trabalha com a economia, me encanta pensar em quantos insights econômicos estão escondidos nessas histórias. Eu não estou dizendo – e é importante deixar isso claro – que Jesus estava ensinando economia. Mas ele viveu em mundo que contém realidades econômicas, e contava histórias sobre elas.

A economia diz respeito à forma como lidamos com as coisas às quais damos valor – e todas essas avaliações são subjetivas. E este princípio está impresso em várias parábolas, como a dos trabalhadores na vinha ou a própria comparação do Reino dos Céus com um grande tesouro, pelo qual alguns estão dispostos a doar tudo o que têm.

Dizer que “Jesus era socialista” é um clichê recorrente da esquerda. Ocorre que, por outro lado, há quem utilize as parábolas para dizer que Cristo, na verdade, seria “de direita”. Faz sentido colocar Cristo em uma caixinha ideológica?

Eu escrevi o livro atento a estes dois extremos. Para começar, eu acho que é anacrônico pensar que Jesus era um capitalista, uma vez que o capitalismo sequer existia na época. É claro que as pessoas faziam trocas no mundo antigo, mas nós não chamaríamos isso de capitalismo.

Além disso, Cristo estava voltado para algo bem mais importante do que o livre mercado. Jesus era criativo e provocador? Sim. Jesus era generoso? Óbvio. Mas isso não faz dele um socialista nem um capitalista. Seus ensinamentos, na verdade, nos dão os parâmetros através dos quais nós podemos desenvolver nosso entendimento moral da economia.

A Doutrina Social da Igreja condena o liberalismo desde meados do século XIX. Como conciliar, então, a defesa do livre mercado com a fé católica? Muito se discute hoje se eles são, de fato, compatíveis.

A primeira coisa que precisa ficar clara é: a qual tipo de liberalismo os Santos Padres estavam se referindo, quando escreveram estas encíclicas? A condenação da Igreja Católica diz respeito a um tipo específico de liberalismo: a liberdade humana para pensar e criar não é condenada, mas a ideologia da liberdade, a crença de que ela é o objetivo final da existência humana, o valor mais importante da vida.

Perceba como as pessoas que arriscaram suas vidas escapando de países comunistas – quer atravessando o Muro de Berlim ou fugindo a nado para os Estados Unidos – queriam viver em liberdade. Mas, uma vez longe das amarras do totalitarismo, elas querem mais do que “apenas” serem livres, porque a vida vai além disso. A liberdade é um meio, é uma ferramenta: nós buscamos, ou deveríamos buscar, o bem, o belo, o verdadeiro. O liberalismo condenado pelos papas é o que enxerga a liberdade como um fim em si mesmo.

Há, sobretudo nos Estados Unidos, um movimento crescente de conservadores que estão rompendo com o liberalismo, acusando-o de sustentar as ideologias progressistas que estão em voga. Como o senhor enxerga este movimento?

Primeiro, penso que há uma atração pelo poder. Se eu quisesse descrever da forma mais generosa possível estes intelectuais atraídos pela abordagem “iliberal”, diria que eles estão tão preocupados com a semear a moralidade que estão dispostos a força política para exigir que as pessoas sejam boas. Só que isso não é possível: você simplesmente não consegue forçar ninguém a ser bonzinho.

Por outro lado, eu também entendo que, do ponto de vista prático, este grupo representa uma minoria. Parece que eles se esquecem que dificilmente serão os responsáveis por conduzir o mecanismo político. Estarão, portanto, dando um poder muito grande a quem não conseguem controlar. Também tenho a impressão de que ignoram a distinção que o próprio Cristo fez entre Deus e César: ele reconhece a legitimidade do poder terreno, mas lhe impõe uma limitação.

E o reino dos Céus é ainda mais exigente do que o reino de César: o que Cristo exige que façamos por amor a ele vai muito além do que qualquer governo pode exigir. O governo te deixa com um pouquinho da sua vida para que você trabalhe pelo Estado, Deus quer sua vida inteira. Quando você derruba a distinção entre Deus e César, ou entre o que eu chamaria de poder e autoridade, começa a confundir as coisas: diminui o papel da Igreja e aumenta o poder do Estado, prejudicando a Igreja e o público ao mesmo tempo.

Nestes meios conservadores “iliberais”, há cristãos que apoiam a Rússia de Vladimir Putin ou a Hungria de Viktor Orbán como países que obtiveram sucesso em barrar os avanços do progressismo – vide a fala do patriarca da Igreja Ortodoxa da Rússia a respeito das paradas gay no Ocidente. Como o senhor avalia o apoio dos cristãos a estes regimes?

Acho que é um erro. Precisamos lembrar continuamente que Deus poderia ter obrigado Adão e Eva a não pecar e, ainda assim, respeitou o seu livre arbítrio. Eu compartilho da oposição do patriarca russo às paradas do orgulho gay, mas não acho que a solução para isso seja colocar as pessoas na cadeia. Minha proposta é bem mais difícil: precisamos convertê-los. Se nós cremos professar a verdade sobre a vida e a sexualidade humana, é nossa obrigação propô-la, em vez de transformar em uma imposição.

Perceba, na verdade, como os “iliberais” possuem a mesma mentalidade do movimento LGBT contemporâneo: eles não querem mais a tolerância. Não estão pedindo que os deixemos em paz com seus relacionamentos, mas que as crianças sejam educadas de certa forma e que haja aprovação tácita de tudo o que fazem. Penso que ambos estão errados, e a solução para isso não é criar um mecanismo de coação. É dizer: há certas coisas que, embora legais, são imorais. E aí, apontamos a imoralidade.

Vivemos em um mundo no qual as grandes empresas têm quase tanto poder quanto o governo. Não à toa, fala-se tanto no capitalismo woke. Atualmente, elas não são ainda mais perigosas do que o Estado e, no limite, são um exemplo dos excessos do liberalismo?

Quando eu me defendo a economia de mercado, é importante dizer que estou me referindo a uma economia realmente livre, e não a uma que dá benefícios fiscais e vantagens legais a certas empresas, empurrando suas concorrentes para fora da competição. Como todo mundo, ando muito frustrado com o que vejo com relação ao papel do Facebook ou do Twitter censurando vozes que discordam dos dogmas progressistas, mas penso que a solução para esse problema é aumentar a competição.

Para isso, é preciso que o Estado suspenda os benefícios concedidos a essas empresas, inclusive disfarçados de “regulamentação”. Note que quando Mark Zuckerberg diz ao Congresso americano que suas empresas devem ser reguladas, na prática ele está pedindo por mais proteção - afinal, ele dispõe dos recursos para sustentar as novas regras. Em uma economia livre, eles sabem que serão desafiados. Aí, então, veremos quem tem as ideias mais interessantes e coerentes.

Há quem diga que o Partido Republicano deveria se tornar o partido da classe trabalhadora, utilizando o poder político para barrar o poder das grandes empresas. O senhor concorda com essa proposta?

É importante dizer que eu não sou membro de nenhum partido político. Meu problema com a política, ao menos nos Estados Unidos, é justamente o fato de ela ter se tornado excessivamente importante na vida das pessoas. Cada vez mais, as lideranças políticas parecem ser as únicas na sociedade, de modo que todos olham para o Estado quando precisam resolver seus problemas. E, sim, a classe trabalhadora enfrenta problemas reais que precisam serem resolvidos, mas somente alguns deles são políticos.

Repare que na política há vencedores e perdedores, enquanto na lógica de mercado – a lógica que respeita as trocas, a liberdade e as relações humanas - há benefícios para todos. Ao transformarmos tudo em problemas políticos, ficamos presos à dinâmica que sempre deixa alguém para trás.

Como o senhor enxerga as críticas do Papa Francisco ao capitalismo e à economia de mercado?

O que eu posso dizer sobre o Papa Francisco – e o digo com toda a reverência ao seu ministério e cargo – é que, com relação à economia, o Santo Padre é absolutamente confuso. Percebo que ele almeja duas coisas: quer que cuidemos dos pobres e que os negócios sejam produtivos tendo como objetivo a promoção do bem comum. E aí, condena o mecanismo através do qual essas coisas podem acontecer.

A redistribuição de riqueza e a caridade, no fim das contas, não aumentam o acesso à riqueza: o que faz isso é a possibilidade de as pessoas serem integradas ao mercado, de modo que não faz sentido dizer que ele é intrinsecamente mau – o que o Papa não diz às claras, mas de forma implícita. Penso que, se ele estudasse um pouco mais a respeito, perceberia a contradição. O próprio São João Paulo II apresentou uma visão bem mais equilibrada, compreensível e, ainda assim, crítica ao capitalismo.

Os conservadores alcançaram uma vitória importantíssima nos Estados Unidos, com a derrubada da decisão Roe versus Wade pela Suprema Corte. Como os defensores da liberdade aliada à moralidade devem se engajar nessa causa, de modo a ir além das divisões políticas e apelar para aqueles que não necessariamente concordam com todos os princípios do livre mercado?

Eis o que me preocupa com relação à decisão da Suprema Corte: o movimento pró-vida nos EUA trabalhou arduamente por meio século para derrubá-la. Temo que, agora que isso aconteceu, o movimento perca o foco e o impulso para enfrentar o grave mal que a realidade do aborto ainda é.

Muita coisa mudou cultural e socialmente no país neste meio século, com um número cada vez maior de americanos aceitando ou aprovando a prática da interrupção da gestão. Como uma cultura, muitas das normas sociais acordadas foram alteradas de modo que, independentemente da legalidade ou ilegalidade do aborto, as pessoas não mantêm mais as mesmas normas morais do passado. Quando isso é combinado com os avanços tecnológicos que tornam o aborto relativamente fácil de obter ainda nos estágios iniciais da gravidez, temos um grave problema de moralidade e justiça.

Se nossa preocupação é a defesa da dignidade da vida humana, independentemente do estágio de desenvolvimento, o que precisa acontecer é uma intensificação da educação e formação sobre quando a vida começa aliada a uma compreensão clara da responsabilidade das pessoas em sustentar mulheres e seus filhos antes e depois do nascimento. Felizmente, isso está em vigor há muito tempo – agora, precisamos melhorar e reforçar essas instituições. 

O que isso ressalta é a realidade de que direito e política, neste caso em nome da proteção da vida humana vulnerável, embora necessários, nunca são suficientes. O mais importante é promover o que São João Paulo II chamou de “cultura da vida”. Só assim podemos esperar ter uma sociedade que promova a virtude e um ethos político e jurídico que proteja cada ser humano.

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