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A expectativa pelo perdão político proposto pelo Projeto de Lei (PL) da Anistia é a pauta da vez. Não teria como ser diferente após as penas excessivas nas condenações dos réus do 8 de janeiro e do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Medidas desse tipo, que geralmente buscam resgatar o equilíbrio democrático e pacificar o país, não são novidade no Brasil. Até agora, já foram 48 anistias. Em outros países da América Latina, o instrumento político já encerrou ciclos de violência, guerras civis e até regimes autoritários.
Mas o histórico latino-americano pode não animar os defensores da anistia para os réus do 8 de janeiro. Depois da promessa de reconciliação nacional, a anistia foi, em alguns casos, reinterpretada pelos poderes Judiciário ou Legislativo dos países vizinhos.
1) Chile (1978)
No Chile, durante a ditadura de Augusto Pinochet, houve violência praticada por grupos de esquerda e, consequentemente, repressão militar.
Organizações como o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) e, mais tarde, a Frente Patriótica Manuel Rodríguez (ligada ao Partido Comunista), realizaram ações armadas, sequestros e atentados contra autoridades do governo militar, incluindo uma tentativa de assassinato de Pinochet.
Em 1978, ainda sob o ditador, o governo implementou uma lei de anistia que beneficiava agentes do Estado acusados de crimes políticos e de repressão. Após a redemocratização, no entanto, tribunais chilenos reinterpretaram a lei para permitir investigações de crimes contra a humanidade, considerando-os imprescritíveis.
2) Bolívia (1983)
Já na Bolívia, a anistia esteve relacionada a períodos de instabilidade política e repressão durante as décadas de 1960 a 1980, quando o país alternava entre governos militares e civis. Nessa época, tanto grupos armados de esquerda quanto agentes do Estado cometeram crimes políticos, incluindo ações violentas, prisões ilegais e assassinatos.
Com a redemocratização, o país precisou encerrar processos relacionados a conflitos políticos e permitir a reintegração de exilados e presos.
Em 1983, o Congresso boliviano aprovou a anistia que beneficiou militares acusados de repressão e, ao mesmo tempo, integrantes de grupos armados que haviam cometido ações violentas contra o Estado.
3) Uruguai (1986)
No Uruguai, a anistia surgiu no contexto da redemocratização após a ditadura civil-militar que governou o país entre 1973 e 1985. A transição foi marcada por um acordo político que buscava encerrar a perseguição contra opositores e reintegrar exilados e presos políticos. Em 1985, a lei de anistia beneficiou militantes da esquerda, especialmente os Tupamaros, grupo guerrilheiro urbano que havia sido fortemente reprimido durante o regime.
Entretanto, pouco depois surgiu a controvérsia em torno dos crimes cometidos pelos militares e policiais durante a ditadura. A solução veio em 1986 com a “Lei de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado”, a qual funcionou como uma anistia de fato para agentes de segurança acusados de violações de direitos humanos. O dispositivo impediu os responsáveis de serem julgados, sob a justificativa de preservar a estabilidade política e evitar que as Forças Armadas se insurgissem contra o novo governo. Ou seja, enquanto a primeira anistia libertou e beneficiou opositores, a segunda protegeu os militares.
A esquerda criticou fortemente a segunda lei, organizando campanhas contrárias a ela nos plebiscitos de 1989 e 2009 para tentar anulá-la. Mas, em ambas as ocasiões, a população escolheu manter a legislação em vigor. Até que a partir dos anos 2000, com governos da Frente Ampla, a Suprema Corte uruguaia começou a reinterpretar a lei e abriu caminho para alguns julgamentos, sob o argumento de que crimes contra a humanidade seriam imprescritíveis.
4) Argentina (1986)
O caso argentino é o mais emblemático da América Latina, porque anos após sua promulgação, a anistia foi revogada.
Durante a ditadura militar argentina (1976–1983), grupos de esquerda como os Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo (ERP) realizaram sequestros, atentados e assassinatos, incluindo o rapto de autoridades e ataques a instalações governamentais. Os militares, por sua vez, pesaram a mão no enfrentamento a grupos radicais. Dos dois lados há registros de violações de direitos humanos.
Em 1986 e 1987 foram aprovadas as leis Ponto Final e Obediência Devida, que limitaram os julgamentos apenas dos militares. Porém, as leis tiveram pouco tempo de validade. A Suprema Corte argentina decidiu revogá-las, permitindo que muitos dos envolvidos fossem processados a partir dos anos 2000.
Assim, mesmo após o perdão político, tanto militares quanto integrantes de grupos armados de esquerda sofreram processos judiciais por seus atos.
5) El Salvador (1992)
Em El Salvador, a anistia foi aprovada logo após o fim da guerra civil (1980–1992), um conflito que deixou cerca de 75 mil mortos. De um lado estava a guerrilha da Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN), de orientação marxista. Do outro, governos militares e forças de segurança apoiados pelos Estados Unidos.
Após o Acordo de Paz de Chapultepec (1992), a Assembleia Legislativa aprovou uma lei de anistia que beneficiou tanto guerrilheiros da FMLN como altos comandantes das Forças Armadas acusados de massacres. Nesse período, o país era governado pela Alianza Republicana Nacionalista (ARENA), que esteve no poder de 1989 a 2009 e teve papel central na condução do processo de anistia.
A FMLN foi transformada em partido político após a anistia e, em 2016, a Suprema Corte declarou a anistia inconstitucional, reabrindo caminho para investigações, especialmente sobre crimes cometidos pelo Exército.
6) Paraguai (1992)
Após a queda do ditador Alfredo Stroessner, que governou o Paraguai entre 1954 e 1989, o Congresso aprovou uma lei de anistia que beneficiou tanto militares quanto opositores envolvidos em crimes políticos.
Assim como na maioria dos demais países, a anistia de 1992 permitiu a transição democrática sem confrontos, mas gerou críticas sobre impunidade e falta de justiça para algumas vítimas.
7) Guatemala (1996)
Ao longo de 36 anos, a Guatemala viveu uma das guerras civis mais longas e sangrentas da América Latina. Entre 1960 e 1996, grupos guerrilheiros de esquerda foram combatidos duramente por governos militares e civis. O saldo foi de 200 mil mortos e desaparecidos.
Com a assinatura dos Acordos de Paz em 1996, o país buscou reconciliação. Uma lei de anistia foi aprovada beneficiando tanto guerrilheiros quanto agentes do Estado.
A Comissão para o Esclarecimento Histórico da ONU apontou que mais de 90% das violações foram cometidas pelo Exército, mas a lei dificultou a responsabilização judicial.
Nos anos 2000, organizações de direitos humanos pressionaram tribunais para reinterpretar a lei. Assim, abriram caminho para julgamentos impensáveis, como o do ex-ditador Efraín Ríos Montt, condenado por genocídio em 2013. Mesmo com a condenação, a sentença foi posteriormente anulada.
8) Anistia na Colômbia: as FARC (2016)
A mais polêmica anistia na América Latina ocorreu em 2016 e selou um acordo de paz com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) após mais de cinco décadas de conflito armado. A anistia, no entanto, perdoou crimes políticos, mas excluiu os demais, como sequestros, assassinatos e recrutamento de menores.
Paralelamente, o governo criou a Jurisdicción Especial para la Paz (JEP), tribunal responsável por julgar os casos mais graves, funcionando como um tribunal de transição, com penas alternativas.
Mas a anistia dividiu o país. Alguns entenderam o instrumento como meio para encerrar a guerra, enquanto outros criticaram por abrir espaço para impunidade de crimes cometidos pela guerrilha. As FARC se converteram em partido político legal, mas a violência e os desafios de responsabilização permanecem em algumas regiões.
9) Anistia no Peru (2025)
O Peru, entre as décadas de 1980 e 1990, enfrentou uma guerra contra grupos insurgentes de esquerda como o Sendero Luminoso (maoísta) e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA). O governo peruano respondeu com operações militares e policiais que também cometeram violações de direitos humanos.
A partir dos anos 1990, durante o governo de Alberto Fujimori, o Estado buscou mecanismos legais para proteger militares e policiais que haviam participado da repressão contra os esquerdistas, alegando que suas ações foram necessárias para vencer o terrorismo.
Em 1995, o Congresso peruano aprovou duas leis de anistia que beneficiavam agentes do Estado. Essas medidas foram amplamente criticadas por organizações de direitos humanos e vítimas, que denunciavam impunidade para massacres e outros crimes graves da época.
Em agosto de 2025, a presidente do Peru, Dina Boluarte, promulgou uma nova lei de anistia que concede imunidade a militares, policiais e membros de comitês de autodefesa envolvidos nos crimes durante o conflito armado interno (1980–2000). A medida abrange casos sem sentença definitiva e pessoas com mais de 70 anos, desde que não condenadas por terrorismo ou corrupção. Estima-se que cerca de 900 indivíduos possam ser beneficiados, incluindo generais e oficiais superiores.
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